Engodos do livre mercado

Intervenção norte-americana na crise desmascara as teses neoliberais e os discursos contra o Estado; a lição é clara: deixada por conta da voracidade do sistema financeiro especulativo, a tragédia seria planetária e as grandes vítimas seriam os de sempre: os pobres e excluídos

Por Leonardo Boff
Teólogo, escritor, professor emérito de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro da Comissão da Carta da Terra


Podemos imaginar a profunda perplexidade que a crise dos mercados mundiais abateu-se sobre os ideólogos do neoliberalismo, do Estado mínimo e dos vendedores das ilusões do mercado.
A queda do muro de Berlim em 1989 e a implosão da União Soviética provocaram a euforia do capitalismo.

O ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e a primeira-ministra inglesa Margareth Thatcher, então sem o contraponto socialista, aproveitaram a ocasião para radicalizar os “valores” do capitalismo, especialmente das excelências do mercado que tudo resolveria.

Para facilitar a obra, começaram por desmoralizar o Estado como péssimo gestor e difamar a política como o mundo da corrupção.

Naturalmente havia e ainda há problemas nestas instâncias.
Mas não se pode abrir mão do Estado e da política se não quisermos regredir à barbárie social.
Em seu lugar, dizia-se, devem entrar as ordenações excogitadas no seio dos organismos nascidos em Bretton Woods e dos grandes conglomerados multiraterais. Entre nós, chegou-se a ridicularizar quem falasse em projeto nacional.
Agora, sob a globalização, insistiam, vigora o projeto-mundo
e o Brasil deve inserir-se nele, mesmo de forma subalterna.
O Estado deve ser reduzido ao mínimo e deixar livre o campo para o mercado fazer os seus negócios.

Nós que viemos, como tantos outros, do compromisso com os direitos humanos, especialmente, dos mais vulneráveis, demo-nos logo conta de que agora o principal violador destes direitos era o Estado mercantil e neo-liberal.

Pois os direitos deixavam de ser inalienáveis; e
ram transformados em necessidades humanas cuja satisfação deve ser buscada no mercado.
Só tem direito quem pode pagar e for consumidor.

Não é mais o Estado que vai garantir o mínimo para a vida.

Como a grande maioria da população não participa do mercado, via negado seu direito.

Podemos e devemos discutir o estatuto do Estado-nação.
Na nova fase planetaria da humanidade mais e mais se notam as limitações dos Estados e cresce a urgência de centro de ordenação política que atenda às demandas coletivas da humanidade por alimento, água, saúde, moradia, saúde e segurança.
Mas enquanto não chegarmos à implantação deste organismo, cabe ao Estado ter a gestão do bem comum, impor limites à voracidade das multinacionais e implementar um projeto nacional.
A crise econômica atual desmascarou como falsas as teses neoliberais e o combate ao Estado.

Com espanto certo jornal empresarial escreveu em letras garrafais em sua seção de economia “Mercado Irracional” como se um dia o mercado fosse racional, mercado que deixa de fora 2/3 da humanidade, que exclui bilhões de pessoas.

Conhecida comentarista de assuntos econômicos, verdadeira sacerdotiza do mercado e do Estado mínimo, inflada de arrogância escreveu:
”As autoridades americanas erraram na regulação e na fiscalização, erraram na avaliação da dimensão da crise, erraram na dose do remédio; e erram quando têm comportamento contraditório e errático”.
E, por minha conta, acrescentaria: erraram em não convocá-la como a grande pitoniza que teria a solução adivinhatória para a atual crise dos mercados.
A lição é clara: deixada por conta do mercado e da voracidade do sistema financeiro especulativo, a crise ter-se-ia transformado numa tragédia de proporções planetárias pondo em grave risco o sistema econômico mundial.
Logicamente, as grandes vítimas seriam os de sempre: os chamados zeros econômicos, os pobres e excluídos.
Foi o difamado Estado que teve que entrar com quase dois trilhões de dólares para, no último momento, evitar o pior.

São fatos que nos convidam a revisões profundas ou pelo menos, para alguns, a serem menos arrogantes.

Fim do neoliberalismo: sem o Estado, nem Deus salva a América
Clique no título e leia o artigo do jornalista Rui Martins, colaborador do MercadoGlobal e correspondente na Suíça dos jornais portugueses Expresso e Público


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