Brasil e Argentina abrem era de cooperação militar, após décadas de desconfiança mútua

Diante da urgência em proteger seus recursos naturais no mar e na terra, países investem na defesa e no desenvolvimento nuclear

Marcela Valente
, Inter Press Service-IPS
Com a colaboração de Mario Osava, do Rio de Janeiro

Diante da urgência em proteger seus recursos naturais no mar e na terra, o Brasil investe na defesa e no desenvolvimento nuclear e o faz em clima de cooperação com a vizinha Argentina, após décadas de desconfiança mútua.
Nos últimos meses o governo brasileiro duplicou o orçamento militar decidido a reativar indústria bélica adormecida.

Esta vontade, longe de preocupar a Argentina, resulta, no novo contexto, motor para o desenvolvimento conjunto de aviões, satélites, veículos blindados e até submarinos movidos a energia nuclear.

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Cristina Fernández assinaram quase 20 acordos de cooperação, a maioria deles em matéria de defesa e desenvolvimento nuclear com fins pacíficos.
Além dos conteúdos, os compromissos têm forte valor simbólico.
Até as últimas décadas do século XX, entre Brasil e Argentina prevaleceu a rivalidade geopolítica, e o eixo da desconfiança esteve no desenvolvimento nuclear alcançado pelos dois maiores países da América do Sul.
Desde a segunda metade dos anos 80, houve maior aproximação política, que coincidiu com período de redução do impulso atômico.
Agora o Brasil está decidido a atualizar sua indústria de defesa, mas evita gerar receio em seu maior sócio do Mercosul (também integrado por Paraguai e Uruguai).
“O Brasil necessita investir no desenvolvimento de indústria militar, mas não quer ser visto com suspeita, por isso busca associar-se com os vizinhos”, disse à IPS o coronel da reserva do exército argentino Ignácio Osacar, coordenador da comissão de defesa do Centro de Estudos Nova Maioria (Cenm).
“A Argentina pode contribuir com recursos humanos e experiência não-nuclear, mas não no orçamento, a menos que haja vontade política muito forte nesse sentido”, afirmou.

O governo brasileiro anunciou em outubro que o orçamento militar duplicará este ano, sem intenção de desatar corrida armamentista com seus vizinhos, os quais considera sócios e amigos.
A intenção declarada é atualizar o equipamento para aumentar seu potêncial de dissuasão e impulsionar o desenvolvimento de indústria nacional de ponta. Pretende-se melhorar o controle do litoral no oceano Atlântico e da imensa fronteira terrestre no coração do continente.
O orçamento para o projeto Calha Norte, que desde a década de 80 prevê intensificar a presença estatal na extensa faixa de fronteira da Amazônia, duplicou este ano.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, explicou que o conceito de defesa que interessa ao Brasil é o de “inibir”, e alertou: “que ninguém pense que pode entrar tranquilamente no espaço aéreo brasileiro nem que pode concentrar forças no mar, em águas territoriais brasileiras”.

A América Latina é a região do mundo em desenvolvimento com menor nível de conflitos.
Assim indica o último informe do Stockholm International Peace Research Institute (Sipri), instituto especializado em estudos sobre desarmamento.
Seu gasto militar representa apenas 3% do total mundial, e não chega a 1% na produção de armas.

Nesse cenário, Brasil, Colômbia (com velha guerra civil), Venezuela e Chile são os que mais investem.

Mas os especialistas não vêem corrida armamentista.

“O Brasil é o único pais latino-americano com vocação de ser ator global como são Rússia, China ou Índia”, disse à IPS Rosendo Fraga, estudioso de assuntos de defesa e diretor do Cenm.

“Para isso conta com volume econômico, mas lhe falta peso estratégico militar para ser verdadeira potência regional”, acrescentou.

Por sua vez, Osacar insiste em que o “Brasil não quer ser questionado como o Chile, a Venezuela ou a Colômbia pelo aumento unilateral dos investimentos em armamento”.
Assim devem ser interpretados os acordos de cooperação assinados com a Argentina, que dão prioridade à indústria bélica, acrescentou Fraga.
Brasil e Argentina acordaram criar planta binacional de enriquecimento de urânio e a fabricação conjunta de reator nuclear que dará propulsão a submarino.
Também abordaram a questão do intercâmbio na indústria aeronáutica.
A Embraer começará a explorar formas de trabalho com a fábrica argentina Área Material Córdoba, com a finalidade de desenvolver aviões de uso militar e eventualmente civil. Buenos Aires e Brasília também se comprometeram a fabricar em série veículo militar leve do qual já existe um protótipo.

O “Gaúcho”, que começou a nascer em 2005, foi resultado da cooperação entre os dois exércitos.

“Projeto simples que funcionou com experiência para futuros desenvolvimentos de maior envergadura”, destacou Osacar.

Em visita à Argentina, Jobim conversou com a ministra argentina da Defesa, Nilda Garré, sobre a idéia de desenhar as forças militares sul-americanas, iniciativa que atende ao interesse estratégico de proteger recursos regionais como água, biodiversidade, hidrocarbonos e a pesca.

“Estamos fazendo estudo muito profundo de um projeto estratégico de defesa. Cremos que é assunto não apenas de nosso país, mas da região”, disse Jobim a Garré, segundo fontes e órgãos da imprensa argentinas.

“Devemos ter uma só voz na região”, disse o ministro, que teve a concordância da ministra.
Por fim, acordou-se desenvolver satélite para a observação dos oceanos.
“A Argentina tem tecnologia espacial e o Brasil está em estágio maduro no projeto de satélites para observação terrestre”, destacou Gilberto Câmara, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

"Satélite conjunto nos permitiria mostrar nossa capacidade de cooperar em área de tecnologia de ponta”, ressaltou ao regressar a Brasília.
As Forças Armadas do Brasil têm papel preponderante no controle aéreo da Amazônia através do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam).

O Brasil avança, assim, na proteção de seus recursos.
Em novembro de 2007, o governo anunciou a descoberta de reserva estimada em oito bilhões de barris de petróleo a grande profundidade no Atlântico e também de enorme jazida de gás.
Essas descobertas, que fortalecem o país, devem ser preservadas, afirmam os especialistas.
“Todo país necessita ter forças armadas em condições operacionais mínimas e o Brasil precisa delas para assegurar algum controle no Atlântico Sul, principal rota de seu comércio”, disse à IPS o coronel da reserva Geraldo Cavagnari.
Cavagnari é fundador e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp).

As grandes reservas de petróleo recém-descobertas são “fator adicional” do aumento de investimentos em equipamentos, incluída a necessidade de reativar o projeto de submarino nuclear, disse.
“A vantagem destes submarinos é que, ao contrário dos convencionais, são silenciosos, mais velozes e podem ficar submersos por mais tempo com a redução da demanda por combustível”, explicou o especialista.
Além disso, se o Brasil quer exportar urânio enriquecido “deve provar sua qualidade utilizando-o”, acrescentou.

Da mesma forma, Osacar estimou que submarino nuclear permitira ao Brasil “garantir seu litoral, sua zona econômica exclusiva, sua projeção estratégica para os países lusitanos da África e ate à Antártida”, interesse que se consolidou recentemente com a visita do Presidente Lula ao continente branco, recordou.
“É compreensível que devido à importância estratégica que possui a zona marítima e costeira para o Brasil, recebe prioridade especial no planejamento militar de sua defesa”, disse Osacar.
“E não é o mesmo que implementar estratégia em espaço marítimo com submarino nuclear ou sem ele”, ressaltou.
Os últimos exercícios militares brasileiros foram realizados sob a hipótese de invasão a zona marítima com reservas de gás e petróleo, recordou Osacar.
Para a Argentina, por outro lado, os acordos representam impulso para indústria muito atrasada, onde a maior parte do equipamento está em manutenção.
Este avanço brasileiro não necessariamente deve ser visto com preocupação pelos Estados Unidos.
“Para Washington, nossa região deixou de ser prioridade há muito tempo, e se não pode encontrar um país confiável, com vocação e poder de controlar o que ocorre na América Latina, talvez se convença de que esse país seja o Brasil”, disse o militar

Nota da redação:
Submarino nuclear: parceria com Rússia e França
O Comandante da Marinha, almirante Júlio Soares de Moura Neto, informou, em depoimento ao Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica, na Câmara dos Deputados, que o Brasil estuda parcerias com a Rússia e a França para desenvolver o submarino nuclear.
De acordo com Moura Neto, o submarino poderá ser entregue à Marinha em seis anos ao custo de US$ 1,1 bilhão.
O almirante disse que o aumento dos recursos para o programa nuclear daria ao País condições de enriquecer urânio para as usinas nucleares em até quatro anos.
Moura Neto destacou que são necessários pelo menos mais R$ 1,04 bilhão para que o projeto seja concluído.
No total, a Marinha já gastou R$ 2,32 bilhões.
Moura Neto lembrou que apenas os cinco países que integram como membros permanentes o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) possuem essa tecnologia – EUA, Inglaterra, França, China e Rússia.

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