Um social-desenvolvimentista no FMI

J. Carlos de Assis.
Economista e Professor

Pela primeira vez desde a criação do FMI, o Brasil terá um representante, nele, capaz de defender os próprios interesses e não os pontos de vista do que já foi chamado de “comunidade epistêmica de banqueiros centrais e financistas”. Não por outra razão, a indicação do economista Paulo Nogueira Batista Jr para diretor brasileiro do Fundo causou escândalo entre os neoliberais tupiniquins. Reagiram como se estivesse sendo violada a câmara sagrada do tempo da ortodoxia.
Entre os mais hostis à indicação, destacou-se Maílson da Nóbrega, um antigo tecnocrata do Banco do Brasil que chegou, por circunstâncias peculiares, ao comando do Ministério da Fazenda no Governo Sarney.
Tendo levado a economia brasileira a uma taxa de inflação mensal de 84%, Maílson passou dessa condição a próspero consultor de empresas, pela extrema proficiência em defender os interesses da banca brasileira internacionalizada e os interesses da banca internacional no Brasil.

Foi Maílson quem suspendeu em 1988 a moratória que Paulo Nogueira ajudou o ministro Dílson Funaro a decretar no início de 1987.
Paulo Nogueira não teve nenhuma responsabilidade pessoal na decretação de uma moratória, determinada pelo esgotamento puro e simples das reservas brasileiras, mas Maílson teve total responsabilidade pessoal na sua suspensão, pelo que pagou, de uma tacada, aos banqueiros credores, sem qualquer contrapartida, um cheque de um bilhão de dólares.

Se a moratória havia sido uma imposição das circunstâncias, sua suspensão sem contrapartida dos banqueiros foi um crime de lesa pátria. É que estava na cara de qualquer um que o problema da dívida externa exigia um tratamento não convencional. A insistência em pagar os atrasados e os juros correntes nas condições originais dos contratos era um contra-senso.
Mas foi isso que Maílson fez. Ou tentou fazer. É que as reservas acumuladas foram esgotadas em menos de um ano. O próprio Maílson, na véspera das eleições de 89, teve que decretar outra moratória.

Essa segunda moratória foi apagada da biografia de Maílson. Os ortodoxos, quando querem criticar o Governo Sarney, lembram-se apenas da moratória de Funaro. Agora, no tiroteio contra a indicação de Paulo Nogueira Batista para o FMI, tentam imputar a ele a “culpa” pela moratória, como se fosse um ato de vontade individual. Curioso é que um dos mais ferozes críticos que apareceram à indicação foi o próprio Maílson, em nome da ortodoxia neoliberal.
Credite-se ao Governo Collor ter recolocado a questão da dívida externa em trilhos adequados, através do hoje quase esquecido embaixador Jório Dauster.
Foi ele quem deu uma virada nas negociações com os credores e colocou na mesa os interesses nacionais. Posteriormente, a renegociação seria fechada em termos aceitáveis no Governo Itamar. Contudo, não foi pelos méritos deste e de quaisquer outros auxiliares seus.
Foi pelos méritos do Governo norte-americano, que, através do Plano Brady, comprou nossa tese de que era indispensável uma solução não convencional para a dívida. De fato, ela foi renegociada com um deságio de 35%.

Para os neoliberais brasileiros, como Maílson, isso foi uma derrota. Eles defendiam o pagamento da dívida nas condições contratuais, mesmo que isso significasse pagar a dívida com o sangue do povo – como diria retoricamente Tancredo Neves.
Acho que ficaram com vergonha perante a comunidade internacional de banqueiros e financistas. Da mesma forma que, recentemente, os ideólogos neoliberais argentinos ficaram com vergonha do deságio que o Governo Kirchner impôs à dívida externa, salvando o pais do caos.

É importante que essas coisas sejam recordadas para que se possa dar a adequada dimensão histórica à decisão do Governo Lula de nomear um economista social-desenvolvimentista assumido para seu representante junto ao FMI.
Esse cargo pertenceu durante 30 anos a um ortodoxo arraigado, Franz Kafka, mantido esse tempo todo menos pela fidelidade aos interesses brasileiros do que pela fidelidade à ideologia do próprio Fundo.
Depois, vieram dois ortodoxos menores, igualmente medíocres, mas “confiáveis” ao sistema, Murilo Portugal e Eduardo Loyo. Com Paulo Nogueira no Fundo, é certo que o Brasil passa a ser realmente representado nele.

Ortodoxia X Heterodoxia
Muitos confundem FMI com ortodoxia monetária. Historicamente, é um equívoco. Na sua origem, o Fundo sofreu alguma influência de Keynes, o grande teórico do capitalismo regulado do século XX, e mesmo que não tenha seguido à risca suas recomendações, adotou em alguns pontos cruciais uma linha doutrinaria flexível.
Em especial, admitia o princípio do controle do movimento de capitais como uma forma de os países evitarem ou resistirem a movimentos especulativos do mercado. Sua virada conservadora só iria ocorrer no fim dos anos 70 e início dos 80, quando do Governo Reagan nos Estados Unidos.

Os EUA e a ortodoxia
Confunde-se também ortodoxia monetária com a posição doutrinária do Governo norte-americano, decisiva dentro do FMI. Outro equívoco. Tradicionalmente, a ortodoxia monetária tem sido uma posição rígida do Governo britânico, sob influência direta dos banqueiros da City que, no pós-guerra, lutavam desesperadamente por manter uma posição de destaque do país pelo menos na área financeira – já que a hegemonia econômica havia sido perdida para os EUA.
No esforço de recuperar o terreno perdido, os banqueiros londrinos tiveram o apoio dos seus associados de Nova Iorque – mas não, pelo menos imediatamente após a guerra, do Governo norte-americano.

Contra os usurários
Não acreditam? Pois vejam o que afirmou o secretário do Tesouro norte-americano, Henry Morgenthau, para explicar, em 1944, a missão do FMI: o objetivo do acordo de Bretton Woods seria “expulsar do templo das finanças internacionais os vendedores de dinheiro usurários”.
Imaginem como teriam reagido, diante dessa declaração, os ideólogos tupiniquins do neoliberalismo, enriquecidos pela vassalagem diante do sistema financeiro especulativo, muitos dos quais, consultores milionários, se apresentam à opinião publica, cinicamente, como professores!

Trajetória da ortodoxia
A partir do eixo Londres-Nova Iorque, a ortodoxia monetária avançou no mundo através dos bons ofícios da banqueirada alemã - numa sociedade que havia sido traumatizada pela hiperinflação dos anos 20, a qual ameaçara uma recidiva no pós-guerra -, assim como a do Japão e a da Suíça, cada uma por razões próprias, mas tendo por resultado último uma comunidade “doutrinária” de banqueiros privatistas. O resultado disso, em última instância, foi a sobrevivência do BIS, Banco de Compensações Internacionais, condenado à morte pelos acordos de Bretton Woods mas, afinal, resgatado pela realidade do poder dos banqueiros internacionais para uma posição de extrema influência no sistema financeiro internacional.

Teoria Conspiratória
Para que ninguém seja tentado por teorias conspiratórias, é bom lembrar que na sua reconstrução no pós-guerra havia boas razões humanitárias e civilizatórias para não se confiar num sistema financeiro internacional dominado por governos de estados-nações. É que foi a insistência norte-americana de receber a qualquer custo seus créditos oficiais, não bancários, contra os seus associados europeus na Primeira Guerra – e a insistência destes, em contrapartida, de receber reparações de guerra da Alemanha -, umas das razões econômicas mais evidentes da Segunda Guerra. Se tivessem sido créditos privados, argumentou-se, o embrulho teria sido resolvido na base de negociações mais flexíveis e deságios de mercado, com inevitáveis perdas. Isso teria justificado o viés privatista do sistema financeiro internacional do pós-guerra.

O FMI hoje
Paulo Nogueira Batista Jr. será diretor de uma instituição que já não tem tanta importância no cenário financeiro internacional dominado por operações monetárias gigantescos sob comando do setor privado.
O FMI passou por grandes testes nos anos 80 e 90 e foi reprovado. Representou o papel de grande xerife da ortodoxia, impondo programas de reestruturação financeira de extremo rigor a paises do Terceiro Mundo, e em especial na América Latina, com resultados deploráveis. Quem está saindo da crise são paises, como Argentina e Venezuela, que passaram por cima do receituário ortodoxo do Fundo e partiram para uma alternativa social-desenvolvimentista, o que lhes está assegurando as maiores taxas de crescimento do Continente.

Um papel supérfluo
Na verdade, a realidade econômica contemporânea tornou o FMI relativamente supérfluo. Ele foi inventado para ajudar a debelar crises financeiras resultantes sobretudo de desequilíbrios de balanço de pagamentos dos paises membros. Ora, a totalidade dos países emergentes e grande parte dos países pobres tornaram-se superavitários no balanço de pagamento, no contexto de uma ordem internacional na qual os Estados Unidos, como grande mercado de bens e serviços do resto do mundo, tornaram-se também os maiores devedores singulares do planeta. Dentro dessa ordem, o FMI não tem o que fazer, exceto gritar ideológica e inutilmente contra os déficits gêmeos norte-americanos!

Um novo papel?
É claro que uma instituição pesada como o Fundo, com sua larga burocracia e seus grandes tentáculos de informação estendidos sobre a economia internacional, acabará por encontrar um novo papel no mundo, que não seja apenas o de guardião de uma ortodoxia monetária e fiscal que só continua sendo aplicada por países fracassados. Nesse contexto, é muito importante que um social-desenvolvimentista como Paulo Nogueira seja nosso representante nele. Em algum momento, haverá de se iniciar uma discussão séria sobre ordem financeira internacional. Nesse momento, é importante que quem falará pelo Brasil não seja um desses ventríloquos dos interesses da banca privada internacional.

Mais informações
As reflexões acima são extraídas de “Moeda, Soberania e Trabalho”, meu último livro, editado pela Europa, a ser lançado nos próximos dias. Trata-se de minha tese de doutorado na UFRJ, defendida no ano passado, com o subtítulo de “Uma proposta crítica de integração sócio-econômica da América do Sul”. Em resumo, procuro mostrar as possibilidades reais de uma política desenvolvimentista na América do Sul, no contexto de um programa de integração econômica e social efetiva, a partir de uma política monetária progressista, similar à que foi apoiada mundialmente pelos Estados Unidos, no pós-guerra, até pelo menos o ano de 1979.

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