O soft power dos EUA e os bancos

Origem do privilégio de fornecer a divisa de reserva do mundo, incontrolável fonte de hegemonia global dos EUA, que possuem, além de bombas nucleares, a mais valiosa e mais poderosa força militar do planeta


Por Steven Lesh, historiador

Uma vez que virtualmente todo dinheiro, que os países utilizam para efetuar negócios para além das suas fronteiras, é criado "a partir do ar" por meio de entradas em contabilidades bancárias, o país que fornece a divisa de reserva do mundo tem o poder de criar moeda suficiente para comprar o mundo.
A trabalhar em conjunto com os seus bancos, o país fornecedor da divisa de reserva pode conquistar e controlar muito mais da riqueza mundial do que o poderia através da força militar.
É este poder, o fundamento do "padrão dólar' do sistema monetário internacional, que o governo dos EUA em conjunto com a Wall Street, os (grandes) bancos estado-unidenses e bancos centrais submissos por todo o mundo, que trabalham desesperadamente para sustentar.
Até que isto seja reconhecido e resistido, não apenas nos EUA mas por todo o mundo, há pouca esperança de economia mundial estável ou de ordem econômica internacional mais justa.
No seu livro "Super Imperialism" escrito há 37 anos, o Dr. Michael Hudson descreveu o novo sistema monetário internacional que emergia do colapso do Acordo Monetário Internacional de Bretton Woods, de 1944.
Aquele acordo especificava os pormenores de sistema monetário internacional que perdurou até que o excesso de US dólares nos cofres de bancos centrais estrangeiros forçaram Richard Nixon a acabar com a sua convertibilidade no ouro possuído pelos EUA.
Em "Global Fracture", sequência de "Super Imperialism", Hudson descreve várias tentativas, que acabaram por não ter êxito, de governos europeus no sentido de escapar à armadilha do dólar na qual se encontravam a seguir ao colapso de Bretton Woods.
Esta armadilha do dólar tinha certo número de componentes funcionais em acréscimo à necessidade de proteção militar dos EUA em relação à antiga União Soviética – ou pelo menos proteção para uma ordem social fundada sobre infraestrutura económica de propriedade privada.
Em 1973, apesar de séria erosão da sua aparentemente inexpugnável ascendência industrial a seguir à II Guerra Mundial, os EUA ainda possuíam capacidade industrial substancial para competir nos mercados internos e mundiais.
Os europeus temiam que a desvalorização do US dólar, o mecanismo tradicional para corrigir déficit crônicos de balanças de pagamentos de países gastadores, transformariam este potencial numa vantagem inexpugnável nos mercados mundiais e dos EUA.
Este componente da armadilha do dólar foi reforçado em 1974 por acordo com a Arábia Saudita para reciclar os dólares recebidos pelo petróleo saudita em bancos de Nova York e Londres.
Àquele acordo seguiu-se, uns poucos anos depois, um outro pelo qual "... o secretário do Tesouro Blumenthal fez acordo secreto com os sauditas para assegurar que a OPEP continuaria a cotar o preço do petróleo em dólares exigindo que os clientes pagassem o petróleo saudita apenas em dólares dos EUA" [1] . Efetivamente, a partir daquele momento, o petróleo do Médio Oriente foi substituído por ouro como suporte para o US dólar.
Este uso da dominação hegemónica das reservas de energia do Médio Oriente, quer a sua motivação subjacente seja ou não sustentar o Império da Dívida baseado no padrão US dólar que emergiu a seguir a ruptura de Bretton Woods, merece consideração especial.
O poder das companhias petrolíferas e automobilísticas dos EUA tem sido mencionado como a força condutora do envolvimento militar dos EUA no Médio Oriente bem como a razão porque este país não deu passos significativos para o desenvolvimento de fontes de energia alternativas e o controle do aquecimento global [NR2] .
Contudo, com pequena reflexão, esta explicação é pouco convincente.
As fontes geográficas reais e previstas do petróleo dos EUA sugerem que o resto do mundo é que está mais dependente do Médio Oriente, não os EUA.
A seguir, vem a segunda Guerra do Golfo Pérsico.
Muitos argumentam que o conflito foi precipitado não por uma necessidade de petróleo urgente ou a pedido de companhias de petróleo do EUA mas sim pela decisão de Saddam Hussein, em novembro de 2000, de exigir euros ao invés de US dólares pelo pagamento do petróleo do Iraque.
O jornalista Greg Palast documenta repetidas tentativas de companhias de petróleo dos EUA para conseguirem que a administração Cheney/Bush lhes permitisse recorrer ao processo menos provocativo de simplesmente comprar petróleo iraquiano ao invés de tentar tomar a posse física dos poços do Iraque. [3]
O livro "The Prize", de Daniel Yergin, a história da indústria mundial do petróleo, enfatiza que as companhias de petróleo ocidentais aprenderam há muito a adaptar-se à nova ordem política mundial fundada sobre formas de imperialismo e colonialismo menos declaradas.
Há toda a razão para acreditar que a presença dos EUA no Médio Oriente tem muito mais a ver com a preservação de uma camisa de força sobre as maiores reservas de petróleo barato do mundo do que qualquer necessidade premente da economia estado-unidense.
O novo Grande Jogo que está a ser travado com a Rússia sobre o controle dos pipelines das províncias ricas em petróleo da antiga URSS para a Europa reforça a probabilidade de que o centro da estratégia diplomática dos EUA tenha sido e continue a ser o controle hegemónico sobre a oferta mundial de energia.
Será isto uma apólice de seguro para garantir que o mundo continuará a aceitar US dólares?
Será isto, ao invés do poder bruto das companhias de petróleo dos EUA, a razão por que o presidente Reagan imediatamente removeu os painéis solares da Casa branca quando tomou posse – em piscar de olho e aceno aos aliados sauditas, ao complexo militar-industrial, à Wall Street e aos bancos, bem como uma carrancuda advertência aos nossos 'aliados'?
Será que a urgente necessidade de o mundo desenvolver fontes de energia alternativas e de reestruturar-se economicamente a fim de preparar-se para futuro de recursos naturais minguantes foi sacrificada aos imperativos de estratégia geopolítica dos EUA fundada sobre a dominação dos combustíveis fósseis remanescentes no mundo?
Se o motivo subjacente para isto é reter o petróleo para o US dólar e o mundo pretende ser sério acerca da alteração climática [NR2] , do esgotamento dos combustíveis fósseis, da paz no Médio Oriente e no mundo, precisamos de novo sistema monetário internacional.
Como mencionado acima, os elementos essenciais da armadilha do dólar foram entendidos há muito.
Além de Hudson, há o "déficit não importa" de Dick Cheney ou "a divisa é nossa mas o problema é seu" do antigo secretário Tesouro John Conolly.
É esta incapacidade para fazer algo acerca da armadilha do dólar na qual se encontram os europeus, para efetuar as opções duras necessárias para conseguirem a liberdade, que explica o desdenhoso desprezo do Donald Rumsfeld para com a "Velha Europa".
Eis mais um comentário recente do Dr. Hudson sobre este tema:
"Os Estados Unidos incidem em déficit comercial crônico, no topo do qual está o aprofundamento das saídas com gastos militares. Ao tratar deste viver crônico para além dos meios financeiros do país, os diplomatas americanos são quase os únicos do mundo que conduzem a diplomacia internacional a seu modo. Eles atuam puramente e implacavelmente no interesse dos EUA; o seu interesse reside em obter o proverbial almoço gratuito, ao darem IOUs (títulos de dívida) pelos recursos e ativos reais de outros países, sem intenção ou capacidade para pagar".
Falha fundamental no sistema monetário internacional do padrão dólar pós Bretton Woods tem sido a sua tolerância para com a dívida crescente dos EUA implícita nos seus déficits crônicos de balança de pagamentos.
Certamente, poder-se-ia argumentar que, em mãos menos arrogantes e mais refinadas do que aquelas da segunda administração Bush, o sistema monetário internacional baseado no padrão dólar poderia ter sido administrado de modo a perdurar muito mais tempo.
Por exemplo, utilizando política monetária inflacionária, as dívidas dos EUA poderia ter sido reduzidas à dimensão administrável em relação à escala da economia real do país e à sua base fiscal.
Naturalmente, líderes políticos refinados no estrangeiro teriam percebido o que estava em andamento. Contudo, enquanto o processo não tivesse impacto direto nas suas clientelas, é improvável que tivessem objetado abertamente.
Os cortes fiscais de Bush e a implacável agenda militar imperial não foram sutis.
Os subornos à sua "base" política – e possivelmente ao seu fundo de aposentadoria como herdeiro da fortuna da família Bush encharcada no sangue dos investimentos do Grupo Carlyle e em um século de investimentos nas indústrias de armas e petróleo – são óbvios.
Enquanto o governo dos EUA saqueava bancos centrais estrangeiros para pagar os custos do seu poder militar por toda a parte do mundo, a Wall Street e os bancos dos EUA estavam a saquear as poupanças dos cidadãos estado-unidenses e a desindustrializar o que antes era um poderoso gigante industrial.
Em ambos os casos, o modus operandi foi o abuso de um sistema monetário estado-unidense dependente dos bancos e do 'sistema monetário sombra' da Wall Street para criar dinheiro – como dívida direta a bancos ou rendimento de investimento para os possuidores de títulos financeiramente engendrados.
Por mais de 300 anos, reformadores do sistema monetário têm estado a insistir junto a governos nacionais para que reclamassem o direito de emitir dinheiro diretamente, baseado sobre o seu crédito soberano, isto é, sua capacidade para tributar, afastando-se das "festas privadas" às quais foram disseminadas com a criação do primeiro moderno banco central em 1694, o Banco da Inglaterra.
Mas há certo número de razões para a reforma monetária, embora certamente essencial, não poder ser a cura para tudo que muitos dos seus advogados acreditam que poderia ser sem certas pré condições.
Aqui está nova observação do Dr. Hudson sobre a utilização da dívida pelas classes dominantes como princípio técnico para explorar as populações que elas dominam — prática que, aliás, precedeu muito o advento da banca central e que, se não controlada, resulta invariavelmente na destruição das civilizações que o permitiram.
Foi a isto que a revolta dos senadores romanos de extrema direita conduziu os seguidores dos irmãos Graco sobre a colina do Senado, em exercício de violência política que impediu Roma de conceder alívio da dívida no fim do segundo século AC.
Lívio, Diodorus, Plutarco e outros historiadores da época atribuíram a provável queda do Império Romano às suas duras leis de dívida orientada em favor dos credores.
Mas hoje, historiadores publicam livros especulando que talvez os problemas fossem tubagens de chumbo ou taças de chumbo para o seu vinho, ou doença, ou transcendência dos limites imperiais, ou superstição — tudo menos a causa que os próprios historiadores romanos apontavam. [5]
A utilização da dívida como ferramenta para explorar populações estrangeiras e domésticas é forma mais genérica do capitalismo financeiro que infligiu tal destruição sobre o mundo do século XX e já está a destruir os fundamentos da prosperidade dos EUA.
A minha definição de capitalismo financeiro é a utilização do dinheiro para criar lucros ao invés da indústria, agricultura e infraestrutura social sobre a qual estes lucros e a riqueza e o bem-estar de uma nação depende em última análise.
(Há fascinante nota editorial que acompanha a definição da Wikepedia de capitalismo financeiro:
" Capitalismo financeiro é expressão na economia política marxista definida como a subordinação de processos de produção para a acumulação de lucros monetários em sistema financeiro".
Isto é o que os EUA tem estado a fazer furiosamente desde a ruptura de Bretton Woods.
Há algumas conclusões óbvias que podemos retirar de tudo isto:
1. Se pretendermos salvar 'economias reais' nos EUA e em todo o mundo, o primeiro passo essencial é repudiar (writing down) a maior parte da dívida fraudulenta acumulada sobre o mundo pela Wall Street, pela comunidade bancária internacional, pelo complexo congressional-militar-industrial dos EUA e, na base de tudo isto, investidores ricos constantemente à procura de novas oportunidades para estender o seu estrangulamento pela dívida às populações sujeitas.
2. Uma vez limpo o terreno pelo repúdio da dívida, devemos assegurar a reforma monetária baseada sobre dinheiro de criação pública — dinheiro criado por governos nacionais de cuja criação o público e não partes privadas desfrutam os benefícios — e crédito nacional soberano.
Dinheiro global, se ele tomar a forma de nova divisa de reserva de país como a China ou de outros países ricos em recursos naturais ou humanos, é ameaça à liberdade do mundo inteiro.
Finalmente, precisamos basear tanto os nossos sistemas monetários nacionais como disciplina transformada da teoria econômica sobre a percepção de que:
"Quando a democracia houver assimilado que, nos dias de hoje, a produção de riqueza é realmente assunto de engenharia científica, e não primariamente assunto de como fazer bocados de papel renderem juros, ..., terá aprendido alguma coisa a qual, como matéria de fato, repousa tão próximo quanto possível das raízes da liberdade económica nos dias atuais". [7]

[1] "Petrodollar warfare: oil, Iraq and the future of the dollar", William Clark, New Society Publishers, 2005, p. 20.
[2] O título de um livro de Bonner e Wiggins
[3] "Armed Madhouse, Greg Palast, Dutton, 2006
[4] "A guerra financeira contra a Islândia", Dr. Michael Hudson, http://resistir.info/crise/hudson_05abr09.html .
[5] "A pensar o impensável: Um cancelamento da dívida e um ano jubileu com uma reabilitação", Dr. Michael Hudson, http://resistir.info/crise/hudson_24set08.html
[6] "G20 Summit Missed the Real Target", Henry C.K. Liu, http://www.atimes.com/atimes/Global_Economy/KD15Dj04.html
[7] "Wealth, Virtual Wealth and Debt", Frederick Soddy, E. P. Dutton & Co., INC., 1933, p. 249.

[NR 1] Soft power: Expressão usada em teoria das relações internacionais para descrever a capacidade de corpo político, como Estado, de influenciar indiretamente o comportamento ou interesses de outros corpos políticos por meios culturais ou ideológicos.
A expressão foi usada pela primeira vez pelo professor de Joseph Nye, de Harvard. Ele desenvolveu o conceito no seu livro de 2004, Soft Power: The Means to Success in World Politics (Soft Power: Os meios para o êxito no mundo político).
Soft power entrou desde então em discursos políticos como uma maneira de distinguir os efeitos subtis de culturas, valores e ideias no comportamento de outros.
Nas palavras de Nye: "O conceito básico de poder" é a capacidade de influenciar outros a fazer o que você quer.
Há três maneiras de se fazer isto: uma delas é ameaçar o outro com o bastão; a segunda é dar-lhes cenouras; e a terceira é atraí-lo o outro, ou cooperar com ele, para que faça o que você quiser. Se conseguir induzi-lo a querer o mesmo que você, isso custará menos cenouras e cacetes".
Soft power representa portanto o terceiro meio de conseguir os resultados desejados e é a antinomia de hard power, o poder sobretudo militar.
Clique AQUI para ler o original deste artigo em inglês.

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