O desafio da América Latina

Integração da região cheia de autoconfiança tem, pelo menos, três dimensões: a regional, pré-requisito crucial para a independência, que dificulta ao Hemisfério Norte dominar países locais; a global, ao estabelecer relações entre sul e sul, diversificar o mercado e investimentos, transformando a China em sócio cada vez mais importante; e a ultima que é a dimensão interna, talvez a mais vital de todas, porque diz respeito ao desenvolvimento econômico e social doméstico, em cada pais


Artigo de Noam Chomsky, professor e cientista político norte-americano
Traduzido por Fernando Esteves e revisado por Omar L. de Barros Filho

Há mais de um milênio, antes das invasões européias, uma civilização floresceu em área que, hoje, conhecemos como Bolívia. Os arqueólogos estão descobrindo que a Bolívia tinha sociedade muito sofisticada e complexa ou, para usar o jargão, “um dos meios ambientes artificiais mais amplos, estranhos e ecologicamente mais ricos do planeta... suas populações e cidades eram grandes e organizadas”, e isso criou a visão de que era uma das maiores obras de arte da humanidade.
Agora a Bolívia e boa parte de sua região, da Venezuela até a Argentina, ressurgiram.
A conquista e seu eco de domínio imperial nos EUA estão dando lugar à independência e à interdependência, que marcam nova dinâmica nas relações entre o norte e o sul.
Tudo isso tem como pano de fundo a crise nos EUA e no mundo.
Durante a década passada, a América Latina converteu-se na região mais progressista do mundo.
As iniciativas ao longo do subcontinente têm tido impactos consideráveis nos países e na paulatina emergência de instituições regionais.
Entre essas ações figuram o Banco do Sul, respaldado, em 2007, pelo economista e prêmio Nobel Joseph Stiglitz, em Caracas, Venezuela; e a Alba, Alternativa Boliviana para a América Latina e Caribe, que poderia ser um verdadeiro amanhecer se sua promessa inicial se mantiver.
A Alba pode ser descrita como uma alternativa ao Tratado de Livre Comércio das Américas, patrocinado pelos EUA, mas os termos são enganosos.
A Alba deve ser entendida como um desenvolvimento independente, não como uma alternativa. Além disso, os chamados acordos de livre comércio têm relação muito tênue com o comércio livre, ou com o comércio num sentido mais sério da palavra.
Certamente não são acordos, a menos que a população dos países envolvidos esteja de acordo.
Seria mais acertado dizer “acordos para defender os direitos dos investidores”, estabelecidos por corporações multinacionais e bancos e estados poderosos para satisfazer seus interesses, acordos firmados, na maioria das vezes, em segredo, sem a participação do público ou sem que se tenha consciência do que esteja ocorrendo.
Outra promissora organização regional é a Unasul, União das Nações da América do Sul. Inspirada, em parte, pela União Europeia, a Unasul propõe-se a estabelecer um Parlamento sul-americano em Cochabamba, Bolívia.
Trata-se de local adequado.
Em 2000, o povo de Cochabamba iniciou corajosa e vitoriosa luta contra a privatização da água. Isso despertou a solidariedade internacional, pois mostrou o que se pode conseguir através de ativismo engajado.
A dinâmica do Cone Sul deve-se em parte à Venezuela, com a eleição de Hugo Chávez, presidente de esquerda, cuja intenção é usar os recursos da Venezuela em benefício do povo venezuelano, ao invés de entregá-los nas mãos dos ricos e privilegiados do próprio país ou do exterior.
Chávez pretende promover a integração regional, o que se constitui em pré-requisito urgente para a independência, para a democracia, e para desenvolvimento positivo.
Chávez não está sozinho nesses objetivos.
A Bolívia, país mais pobre do continente, é talvez o exemplo mais dramático.
A Bolívia traçou importante caminho para a verdadeira democratização do hemisfério. Em 2005, a maioria indígena, população que tem sofrido as mais severas repressões no hemisfério, ingressou na arena política e elegeu um dos seus, Evo Morales, para impulsionar programas originados nas organizações populares.
A eleição foi apenas etapa nas lutas em curso.
Os tópicos eram bem conhecidos e urgentes: controle dos recursos, direitos culturais e justiça numa complexa sociedade multiétnica, e o abismo sócio-econômico entre a grande maioria e a elite abastada e os governantes tradicionais.

Em consequência, a Bolívia tornou-se cenário do mais perigoso conflito entre a democracia popular e as elites privilegiadas europeizadas, que se ressentem da perda de seus privilégios políticos e se opõem à democracia e à justiça social, às vezes de maneira violenta.
É comum contarem com o firme apoio dos EUA.
Em setembro passado, durante uma reunião de emergência da Unasul em Santiago, Chile, líderes sul-americanos declararam “seu firme apoio ao governo constitucional do presidente Evo Morales, cujo mandato foi ratificado por grande maioria”, referindo-se a sua vitória em recente referendo.
Morales agradeceu à Unasul, salientando que, “pela primeira vez na história da América do Sul, os países da nossa região estão decidindo como resolver seus problemas sem a presença dos EUA”.
Há muito tempo os Estados dominavam a economia boliviana, sobretudo através do controle de suas exportações de estanho. Segundo Stephen Zunes, especialista em assuntos internacionais, no começo da década de 50, “em momento crítico dos esforços da nação para se tornar auto-suficiente, o governo dos EUA obrigou a Bolívia a utilizar seu parco capital não para o desenvolvimento do país, mas para compensar antigos donos de minas e pagar mais uma vez a dívida externa do país.
A política econômica que foi imposta à Bolívia naquela época é precursora dos programas de ajuste estrutural implementados no continente 30 anos mais tarde, sob os termos do neoliberal “Consenso de Washington” que, em geral, teve efeitos desastrosos.
Agora, as vítimas do fundamentalismo do mercado neoliberal estão também nos países ricos, onde a maldição da liberalização financeira causou a pior crise financeira desde a grande depressão.
As modalidades tradicionais do controle imperial - violência e guerra econômica - perderam espaço. A América Latina tem opções reais.
Washington entende muito bem que essas opções ameaçam não apenas sua influência no Hemisfério Sul, mas também sua influência em todo mundo.
O controle da América Latina tem sido o objetivo da política externa dos EUA desde os primeiros dias da república.
Se os Estados Unidos não podem controlar a América Latina, “não podem implantar com sucesso sua ordem em outras partes do mundo”, concluiu, em 1971, o Conselho Nacional de Segurança, na época de Richard Nixon.
Também era considerado de extrema importância destruir a democracia chilena, coisa que, aliás, foi feita.
Washington apenas respaldou a democracia quando ela estava de acordo com seus interesses econômicos e estratégicos. Essa política continua a mesma até hoje. Essa disposição antidemocrática são a forma racional da teoria do dominó, em certas ocasiões qualificada, de maneira precisa, “como a ameaça do bom exemplo”.
Por esse motivo, o menor desvio da mais estrita obediência é considerado uma ameaça à existência, que é reprimida da forma mais dura. Isso ocorre com as organizações camponesas das comunidades remotas do Laos e até com a formação de cooperativas de pescadores em Granada.

A América Latina é famosa pela extrema concentração de riqueza e poder, e pela falta de responsabilidade das elites privilegiadas em relação ao bem-estar de seus países.
A América Latina tem grandes problemas, porém existem desenvolvimentos promissores que poderiam anunciar uma época de verdadeira globalização.
Trata-se de uma integração internacional em favor dos interesses do povo, não de investidores e de outras instâncias do poder.


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