Não há a menor possibilidade de que os norte-americanos abandonem as posições de poder

Professor José Luís Fiori (foto), diretor do Programa de Pós-Graduação de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma que pressão competitiva mundial aumenta e provoca nova corrida imperialista com a participação dos EUA, da China e da Rússia, esta retornando à disputa pela hegemonia global depois de uma década de derrota, crise e reestruturação

Por Redação do IHU Online

“A ideologia econômica liberal não previu e não consegue explicar a crise que ela provocou e, como conseqüência, não tem nada para dizer, nem propor neste momento. Por isso mesmo, as ideias ortodoxas e liberais saíram do primeiro plano, mas não morreram, nem desapareceram”, afirma Fiori.
Autor de "O mito do colapso do poder americano", escrito em parceria com Carlos Medeiros e Franklin Serrano e lançado pela Editora Record no final de 2008, Fiori escreveu "60 Lições dos 90 - Uma década de neoliberalismo" e "O voo da coruja - Para reler o desenvolvimento brasileiro".
Na entrevista a seguir, concedida à à revista on-line do Instituto Humânitas Unisinos, ele explica porque a crise financeira e as guerras em curso no mundo não são sintoma do fim do poder norte-americano.
Fiori afirma que a longa “adolescência assistida” da América do Sul acabou: “o mais provável é que esta mudança provoque, no médio prazo, competição cada vez mais intensa entre o Brasil e os EUA pela supremacia na América do Sul”, acrescenta ele.

Qual é a tese que o senhor defende em "O mito do colapso do poder americano"?
José Luís Fiori - Não é simples de responder sua pergunta em poucas linhas, porque o livro reúne três ensaios que compartem vários pontos de vista, mas não tem necessariamente a mesma perspectiva teórica. No meu ensaio, existe a parte mais conjuntural e outra mais de longo prazo e, além disso, existe a parte teórica mais crítica e outra mais propositiva.
Começo criticando a teoria dos ciclos hegemônicos, e proponho leitura alternativa do sistema mundial, visto como universo em expansão contínua, onde todas as potências que lutam pelo poder global estão sempre criando ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. Por isso, para mim, desordem, crise e guerra não são, necessariamente, anúncio do fim ou docolapso dos países e das economias envolvidas.
E, neste início do século XXI, eu considero que as guerras e a crise econômica mundial que estão em pleno curso não são sintoma do fim do poder americano. Pelo contrário, fazem parte de transformação de longo prazo, que está aumentando a “pressão competitiva” dentro do sistema mundial, e está provocando nova corrida imperialista entre as grandes potências, com a participação decisiva dos EUA, da China e da Rússia, que retorna ao sistema depois de uma década de derrota, crise e reestruturação.

Por que o senhor diz que o poder dos EUA é tão forte que seu colapso seria apenas mito?
José Luís Fiori - Porque depois da II Guerra Mundial, como depois da crise dos anos 1970, os EUA foram a potência que ficou com o controle inconteste da moeda internacional, do mercado e dos capitais financeiros dominantes no mundo, da inovação da ponta tecnológico-militar e das principais pontas do sistema de informação e comunicação mundial, além, é lógico, de manterem sistema de controle militar global, por terra, mar e ar.

A crise financeira internacional e o crescimento de países como a China não afetarão o poder norte-americano? Não se trata do fim do império norte-americano?

José Luís Fiori - Para responder esta pergunta, preciso fazer antes breve digressão teórica. Eu não leio a história do sistema mundial como sucessão de ciclos hegemônicos, espécie de ciclos biológicos dos estados que nascem, crescem, dominam o mundo e depois decaem e são substituídos por um novo estado que percorreria o mesmo ciclo anterior até chegar à sua própria hora da decadência.
A melhor analogia para se pensar o sistema mundial é como universo em expansão contínua, onde todos os estados que lutam pelo poder global - em particular, a potência líder ou hegemônica - constituem um núcleo inseparável, complementar e competitivo, em permanente estado de preparação para a guerra.
Por isso, são estados que estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. E as potências que uma vez ocupam a posição de liderança não desaparecem, nem são derrotadas por seu sucessor. Elas permanecem e tendem a se fundir com as forças ascendentes, criando blocos cada vez mais poderosos de poder, como aconteceu, por exemplo, no caso da Holanda, Grã Bretanha e Estados Unidos que, na verdade, foram alargando sucessivamente as fronteiras do poder anglo-saxônico.
Além disso, neste sistema interestatal capitalista em que vivemos, crises econômicas e guerras não são, necessariamente, um anúncio do fim ou do colapso dos estados e das economias envolvidas. Pelo contrário, na maioria das vezes, fazem parte de um mecanismo essencial da acumulação do poder e da riqueza dos estados envolvidos dentro do sistema interestatal capitalista.
Agora bem, do meu ponto de vista, as crises e guerras que estão em curso neste início do século XXI ainda fazem parte de transformação estrutural, de longo prazo, que começou na década de 1970 e que aponta, neste momento, para um aumento da “pressão competitiva” mundial e para nova explosão expansiva do sistema mundial - como a que ocorreu nos longos séculos XVI e XIX -, que contará com papel decisivo do poder americano.

Como o senhor vê a presença de Barak Obama no poder a partir dessa tese defendida no livro? Algo muda?

José Luís Fiori - Se só nos fixarmos nas pessoas e seus discursos, creio que não haveria muito que esperar de novo da política externa do governo Obama. As figuras centrais que estão no comando da política externa, como no caso da política econômica, são conhecidos que já governaram durante os oito anos da administração Clinton que promoveu cerca de 48 intervenções militares ao redor do mundo, ao contrário do que se imagina que foi a década de 1990.
Por outro lado, os programas de campanha da senhora Hillary, como o do próprio Obama, foram explicitamente intervencionistas e comprometidos com a manutenção do poder global dos EUA. Porque não podemos esquecer que os EUA têm infraestrutura global de poder militar pela qual devem zelar, seja qual for o seu governo. São os seus acordos militares com cerca de 130 países, são suas 700 bases militares situadas no mundo e mais de meio milhão de soldados servindo ou lutando fora do território norte-americano.
Os EUA devem enfrentar dificuldades e contradições crescentes para administrar este poder global, mas não há a menor possibilidade de que os americanos recuem e abandonem estas posições de poder, por sua própria conta, com ou sem Obama.

A partir da crise financeira atual, quais os rumos que o senhor vislumbra para a América do Sul e o Brasil?
José Luís Fiori - Esta crise econômica deve produzir aumento dos conflitos entre os próprios estados da região, e deles com os Estados Unidos. Já não há possibilidade de escapar da pressão competitiva mundial, e isto acelera a formação objetiva e incontornável de um subsistema estatal no continente sul-americano, potencializando o poder interno e externo dos seus estados. E, neste sentido, a integração econômica do continente seguirá sendo um desafio absolutamente original, porque suas economias não são complementares, porque não existe um país que cumpra o papel de “locomotiva” da região, e porque a América do Sul não tem um inimigo externo comum.
De qualquer maneira, do meu ponto de vista, a longa “adolescência assistida” da América do Sul acabou. E o mais provável é que esta mudança provoque, no médio prazo, uma competição cada vez mais intensa entre o Brasil e os EUA, pela supremacia na América do Sul.

O senhor pensa que a crise atual sinaliza que nos encontramos diante do fim do capitalismo, pelo menos da forma como o conhecemos?
José Luís Fiori - Não, do meu ponto de vista não se trata do fim do capitalismo, nem do sistema interestatal. Não há nenhum sinal disso. A origem desse sistema mundial que nasce na Europa e é ganhador impõe sua supremacia ao mundo, nas suas formas básicas de organização do poder como estado e da economia como capitalista. Vitória estrondosa que nasce na Europa nos séculos XII a XIV até o aparecimento das economias nacionais no fim do século XVI.
Fernand Braudel sugere que é preciso subir ao sótão para ver as relações do príncipe com o banqueiro. O sistema mundial que nasceu na Europa se assemelha mais a universo em expansão contínua do que a sucessão de ciclos vitais ou biológicos. Como se este sistema acumulasse energia e se expandisse de forma contínua desde o século XIII, passando por momentos de explosão expansiva, como no século XVI, XIX e agora de novo, neste início do século XXI.

No contexto atual, qual é o papel dos EUA, da China, da Rússia, e de países da Ásia Central, da África e da América do Sul?
José Luís Fiori - Como já disse, apesar da violência desta crise financeira, e dos seus efeitos em cadeia sobre a economia mundial, não deverá haver sucessão chinesa na liderança política e militar do sistema mundial.
Pelo contrário, do ponto de vista estritamente econômico, o mais provável é que ocorra um aprofundamento da fusão financeira em curso desde a década de 1990, entre a China e os EUA. Assim mesmo, do ponto de vista geopolítico, acho que o que assistiremos nas próximas décadas, será uma competição intensa dentro de núcleo central do Sistema Mundial constituído pelos EUA, pela China, e pela Rússia, essa graças à suas reservas energéticas, ao seu arsenal atômico, e ao tamanho das suas perdas territoriais e populacionais depois de 1991.
Se for assim, se estará constituindo novo núcleo central do sistema mundial composto por três “estados continentais”, que detém isoladamente um quarto da superfície da terra, e mais de um terço da população mundial. Nesta nova geopolítica das nações, a União Européia terá um papel secundário, ao lado dos EUA, enquanto não dispuser de poder unificado, com capacidade de iniciativa estratégica autônoma. A Índia, Irã, Brasil e África do Sul deverão aumentar o seu poder regional, em escalas diferentes, mas não serão poderes globais, ainda por muito tempo. É muito difícil de prever os caminhos do futuro, depois da era imperialista em que estamos submersos.

Quais as previsões que o senhor faz, de forma geral, a partir da crise financeira atual?
José Luís Fiori - Os economistas e as autoridades governamentais norte-americanas, e de todo o mundo, estão em voo cego, mesmo quando não o reconhecem, ou não possam reconhecê-lo.
No meio desta confusão, acho que só existem três coisas que podem ser afirmadas com algum grau de certeza: a primeira é que, faça o que faça, o governo americano será absolutamente decisivo para a evolução da crise em todo mundo; a segunda é de que, neste momento, todos os governos envolvidos estão fazendo a mesma aposta e adotando as mesmas estratégias monetárias e fiscais, e aprovando pacotes sucessivos (e até agora impotentes) de ajuda à estabilização e reativação do sistema financeiro e de estímulo à produção e ao emprego, junto um aumento generalizado - mas ainda disfarçado - das barreiras protecionistas.
E todos os governos estão se propondo aumentar o rigor da regulação dos seus e agentes e mercados financeiros; e a terceira coisa que se pode afirmar com toda certeza é que ninguém, absolutamente ninguém, sabe se estas políticas darão certo.

Como o senhor analisa a questão desta volta da intervenção do Estado na economia? Considera que foi vitória do keynesianismo e derrota definitiva das ideias neoliberais?
José Luís Fiori - Nada do que está acontecendo tem a ver com qualquer tipo de vitória ou derrota teórica. Trata-se de reação emergencial e pragmática frente à ameaça de colapso do poder dos estados e dos bancos, e, como conseqüência, dos sistemas de produção e emprego. Foi uma mudança de rumo inesperada e inevitável, que foi imposta pela força dos fatos, independente da ideologia econômica dos governantes que estão aplicando as novas políticas e que, na sua maioria, ainda eram ortodoxos e liberais até anteontem.
É como se estivéssemos assistindo à versão invertida da famosa frase da senhora Thatcher: “there is no alternative”. Só que agora, do meu ponto de vista, esta nova convergência aconteceu sem maiores discussões teóricas ou ideológicas e sem nenhum entusiasmo político, ao contrário do que aconteceu com a “virada” liberal-conservadora dos anos 1980, 1990, que atravessou todos os países e todos os planos da vida social e econômica.
A ideologia econômica liberal não previu e não consegue explicar a crise que ela provocou e, como conseqüência, não tem nada para dizer, nem propor neste momento. Por isso mesmo, as ideias ortodoxas e liberais saíram do primeiro plano, mas não morreram, nem desapareceram. Pelo contrário, permanecem atuantes em todas as frentes e trincheiras de resistência às políticas estatizantes que estão em curso. Uma resistência que tem crescido a cada hora que passa, dentro e fora dos EUA. Mas, por outro lado, os keynesianos também não têm uma teoria capaz de dar conta da complexidade desta nova situação mundial.
O problema é que, na maioria das vezes, os keynesianos têm uma enorme dificuldade de tratar com os interesses e as lutas do mundo real. E compartilham com os liberais uma espécie de “erro inverso”: os liberais acreditam na possibilidade e na eficácia da eliminação do poder político e do estado do mundo dos mercados, enquanto os keynesianos acreditam na possibilidade e na eficácia da intervenção corretiva do estado no mundo econômico.
Mas estão sempre imaginando estado homogêneo e onisciente, capaz de formular políticas econômicas sábias, justas e eficazes, desde que não sejam “atrapalhadas” pelo mundo real. Ou seja, em última instância, ortodoxos e keynesianos compartilham a mesma dificuldade de entender e incluir nos seus modelos, projeções e recomendações, as contradições e as lutas políticas próprias do mundo econômico.

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