Noam Chomsky: "capitalismo só existe no terceiro mundo"

Chomsky fala no Fórum Social Mundial, no Brasil
Em entrevista à revista IstoÉ, intelectual e comentarista político norte-americano diz que o poder do capital é imposto à força nos países pobres, afirma que o Brasil está no caminho certo aumentando as relações com outros nações do Sul e defende mais apoio a organizações sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

Maíra Magro

Ele foi considerado o intelectual mais importante do mundo pelo jornal The New York Times. Em 2005, ficou no topo da lista dos principais acadêmicos do planeta, segundo pesquisa feita pelas influentes revistas Foreign Policy, dos Estados Unidos, e Prospect, da Inglaterra.
Aos 80 anos, Noam Chomsky, americano descendente de judeus russos, é reconhecido como o papa da linguística moderna, por ter revolucionado a área com pesquisas sobre aquisição de linguagem.
Professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) há mais de meio século, Chomsky é filósofo e comentarista político.
A decisão de nadar contra o pensamento político dominante veio com a guerra do Vietnã, nos anos 60. Publicou mais de 70 livros e mil artigos.
Em geral, obras de repercussão mundial sobre atentados terroristas, neoliberalismo e política internacional.
Um dos maiores críticos da política internacional americana, Chomsky lançou, no Brasil, "Estados fracassados: o abuso do poder e o ataque à democracia" (Bertrand, 349 págs.), no qual argumenta que os Estados Unidos assumiram as características de Estado fracassado e padecem de déficit democrático. Nesta entrevista, ele diz que não vê perspectivas de mudanças com o presidente Barack Obama, mas deposita mar de esperanças na América do Sul: "Neste momento, é a região mais interessante do mundo", afirma Chomsky.

ISTOÉ - Barack Obama pode mudar o que o sr. chama de "Estado fracassado"?
Noam Chomsky - Possibilidades sempre existem, mas não há nada que aponte para isso. As nomeações têm sido basicamente do lado dos falcões (defensores da guerra), e as ações também. Obama intensificou a guerra no Afeganistão, aumentou os ataques ao Paquistão e rejeitou os apelos dos presidentes desses países para eliminar os bombardeios que atingem alvos civis.
Quanto à questão de Israel e da Palestina, ele já deixou bem claro que não tem a intenção de buscar acordo. Em sua primeira declaração sobre política internacional, afirmou que a responsabilidade primária dos Estados Unidos é proteger a segurança de Israel, e não a dos palestinos, que são os que precisam de proteção.


O sr. está dizendo que Obama é igual a George W. Bush?

Chomsky - Para começar, há distinção entre o primeiro e o segundo mandato de Bush. O primeiro foi muito arrogante e agressivo, desconsiderou as leis internacionais e foi tão abusivo que se distanciou de países aliados.
O segundo mandato amaciou a retórica e as ações, que estavam causando danos demais aos interesses dos Estados Unidos. É possível que Obama dê continuidade às políticas do segundo mandato.
Em alguns aspectos, Obama ainda é mais agressivo, como no Paquistão e no Afeganistão, que, pelo que vejo, são suas principais preocupações internacionais.


Os Estados Unidos são democracia fracassada?

Chomsky - Se você comparar as eleições de 2008 com as de um dos países mais pobres do hemisfério, a Bolívia, o processo é radicalmente diferente. Você pode gostar ou não das políticas do presidente Evo Morales, mas elas vêm da população. Ele foi escolhido por eleitorado popular que traçou suas próprias políticas.
As questões são muito significativas: controle dos recursos naturais, direitos culturais... A população não se envolveu apenas no dia das eleições, essas lutas estão ocorrendo há anos. Isso é uma democracia.
Os Estados Unidos são exatamente o oposto. O melhor comentário sobre as eleições foi feito pela indústria da publicidade, que deu à campanha de Obama o prêmio de melhor campanha de marketing do ano.


Alguns presidentes sul-americanos são chamados de populistas. O que o sr. acha disto?
Chomsky - Populista quer dizer alguém atento à opinião popular.


Mesmo quando a distribuição de recursos não é sustentável?

Chomsky - Distribuição de recursos tem a ver com política econômica. Nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, a política econômica é definida por instituições financeiras, por pessoas que levaram o país à ruína e estão levando boa parte do mundo à ruína. Isso não é populismo, é política econômica destinada a enriquecer setor bem pequeno.
Você pode até discutir se a forma que Evo Morales distribui recursos é correta, mas chamar isso de populismo é usar palavras feias para políticas que desagradam aos ricos.

O presidente Hugo Chávez acaba de passar por referendo que permite sua reeleição ilimitada. Isso é aceitável em democracia?

Chomsky - Você acha que os Estados Unidos foram um Estado fascista até 1945, quando tínhamos a mesma regra? O presidente (Franklin) Roosevelt foi eleito quatro vezes seguidas.
Eu, pessoalmente, não aprovo, mas não posso dizer que isso seja incompatível com a democracia, a não ser que você diga que os Estados Unidos nunca foram uma democracia.
Isso é hipocrisia total. Isso vale também para outras democracias parlamentaristas, em que o primeiro-ministro pode ser reeleito de forma indefinida.


O sr. avalia o governo Chávez positivamente?
Chomsky - A pergunta que importa é: o que os venezuelanos pensam do governo? Em pesquisas feitas pelo Latinobarômetro, organização chilena muito respeitada, desde a eleição de Chávez, a Venezuela fica no topo ou perto do topo de lista de países quanto ao apoio popular ao governo e à democracia.


O sr. acha que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva representou alguma mudança para o Brasil?
Chomsky - De forma geral, suas políticas têm sido bastante construtivas. A disposição inicial de aceitar a disciplina das instituições financeiras internacionais foi questionável.
Até havia justificativa para isso, mas ele poderia ter escolhido políticas alternativas que teriam estimulado mais a economia. Acho também que as políticas poderiam dar mais apoio a organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas, em geral, o País parece estar andando na direção certa. A disposição de lidar com os problemas internos de desigualdade extrema, da fuga de capital, entre outros, está pelo menos na agenda.
Além disso, há a tendência de integração regional e independência. A União de Nações Sul- Americanas (Unasul) é um exemplo, mas existem muitos outros, e a integração é um pré-requisito para a independência.
De maneira geral, isso torna a América do Sul, do meu ponto de vista, o lugar mais interessante do mundo atualmente.


E qual o papel do Brasil?

Chomsky - O Brasil tem papel central na integração regional, pois é o país mais rico e poderoso da região. O presidente Lula tem tomado posição muito boa, garantindo que países que os EUA tentam arruinar, principalmente a Bolívia e a Venezuela, estejam integrados ao sistema.
O Brasil está aumentando as relações com outros países do Sul. Mas a dependência das exportações agrícolas é forma questionável de desenvolvimento. Deveria haver tentativas de desenvolvimento que não dependessem tanto de exportações, como a da soja.


Como o sr. vê o ressurgimento de medidas protecionistas nos Estados Unidos e na União Européia?
Chomsky - Antes de falar sobre isso, temos que eliminar grande quantidade de mitologia. Os Estados Unidos, o país mais rico do mundo, sempre foram altamente protecionistas. Sua economia avançada depende crucialmente do setor estatal. Se você pensa em computadores, internet, tecnologia da informação, laser, tudo isso foi financiado pelo Estado. Você não pode falar em livre mercado porque eles não acreditam nisso.

O capitalismo está entrando em colapso com a crise?

Chomsky - O único lugar onde o capitalismo existe é nos países do Terceiro Mundo, onde ele é imposto à força.


Os anticapitalistas têm algum modelo para oferecer?

Chomsky - Existem diversas pessoas propondo coisas interessantes, basta ver o encontro em Belém (Fórum Social Mundial). Elas não são totalmente novas, vêm dos movimentos dos trabalhadores no século XIX.
São propostas de se democratizar a sociedade inteira. Isso significa o controle democrático da manufatura, das finanças, dos sistemas de informação, e por aí em diante.


Vê algo de positivo no papel dos Estados Unidos atualmente?

Chomsky - Sim. Mas não se deve esperar que os países mais poderosos sejam agentes da moralidade. Não faz sentido ficar elogiando esses países pelas coisas decentes que fazem.
Os Estados Unidos deveriam, por exemplo, ter papel fundamental na reconstrução de Gaza depois das terríveis agressões feitas junto com Israel – foi ataque em conjunto, pois eles estavam usando armas dos EUA, é claro.
A estrangulação de Gaza pelos Estados Unidos e Israel, apoiada pela União Européia, começou imediatamente após as eleições, que foram reconhecidas como livres e justas, mas os Estados Unidos não gostaram do resultado e punem as pessoas. É boa indicação da aversão extrema que as elites ocidentais nutrem pela democracia.


O sr. concorda que os intelectuais de hoje são menos engajados que nos anos 60 e 70, por exemplo?

Chomsky - Não concordo com isso. É ilusão pensar que intelectuais eram diferentes no passado. De modo geral, os intelectuais são altamente subordinados ao poder. Isso também era verdade nos anos 60.
Veja, por exemplo, a guerra do Vietnã, que era questão importantíssima na época. Se você olhar o The New York Times ou outro jornal importante nos quais intelectuais se expressavam, a crítica mais forte que poderá encontrar da guerra é – bem, estou citando a crítica mais extrema – de que a guerra começou com esforços de fazer o bem, mas se transformou em um desastre com custos muito altos para nós mesmos.

O sr. dedicou a vida a pensar as questões mais importantes do mundo. Como se sente hoje?
Chomsky - Há passos em direção a um mundo mais livre, justo e democrático. Isso não cai do céu como um presente, vem da luta popular engajada. E, sim, ela tem sido muito bemsucedida. Então, na medida em que sou parte dela, eu me sinto feliz.
Os movimentos populares que se desenvolveram a partir dos anos 60 tiveram um impacto muito significativo no mundo, de diversas formas. Veja exemplo óbvio, das últimas eleições nos Estados Unidos: o Partido Democrata tinha dois candidatos, uma mulher e um afro-americano. Isso seria inconcebível 20 anos atrás.

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