Eric Toussaint (foto) explica que acordo, firmado entre duas ditaduras, não respeita a Convenção de Viena, que regula tratados internacionais, por isto deve ser auditada; ele lembra que Getúlio Vargas, nos anos 30, reduziu, após auditorias, em mais de 50% dívida brasileira
Entrevista a Roberto Irrazábal – Ultima Hora, de Assunção, Paraguai
O presidente do Comitê para a Abolição da Dívida Externa do Terceiro Mundo, Eric Toussaint, visitou recentemente o Paraguai, convidado pelo presidente Fernando Lugo, quem lhe pediu assesoria em temas importantes como a revisão do Tratado de Itaipu, a crise econômica mundial, a revisão da dívida externa e os processos de integração.
O analista belga sustenta que o Paraguai, se não conseguir a renegociação, poderia pedir a nulidade do Tratado de Itaipu invocando a Convenção de Viena, que regula todos os tratados internacionais.
- Como você vê as demandas paraguaias ao Brasil em relação a Itaipu?
- Estudei o Tratado de Itaipu de 1973, e para mim, poderia ser declarado nulo pelas duas partes, ou somente pelo Paraguai, se o Brasil não estiver de acordo.
No Direito Internacional, um Estado pode tomar ato soberano de repúdio ou de abrogação de tratado.
Digo isto como opção que não implica chegar a enfrentamento com o Brasil, mas para renegociar outro tratado justo e que respeite o Direito Internacional. O Paraguai tem este direito, mas o importante é, primeiramente, obter solução amigável.
- Como se pode obter esta nulidade?
- Este é tratado firmado entre duas ditaduras e tem vários artigos que não respeitam a Convenção de Viena, pacto que todos os países devem respeitar e que foi firmado no ano de 1963 para regular os tratados internacionais. O respeito à igualdade entre as partes, entre outros aspectos, são argumentos.
- O que você propõe em relação às dívidas do Paraguai?
- Falamos com o presidente Fernando Lugo sobre o tema de auditar de maneira integral as dívidas reclamadas ao Paraguai, as dívidas binacionais com Itaipu,do lado brasileiro, e Yacyretá, do lado argentino.
A dívida externa pública paraguaia alcança cerca de dois bilhões de dólares. Esta é minha recomendação que vem de várias experiências, dentre elas a do Equador.
- Como foi esta experiência no Equador?
- A Presidência da República do Equador criou comissão nacional e internacional, com 12 representantes da sociedade civil equatoriana e 6 representantes de organizações sociais internacionais. Também participaram quatro órgãos do Estado: a Controladoria, a Procuradoria Geral do Estado, a Comissão Anticorrupção e o Ministério de Economia e Finanças.
- Você participou?
- Eu fiz parte dessa comissão, e durante 14 meses estudamos todos os contratos para identificar as dívidas legítimas e ilegítimas, de maneira a dar as recomendações ao governo que tomou as decisões.
- O que poderia ocorrer aqui no Paraguai?
- Paraguai poderia utilizar a experiência do Equador e adaptá-la à sua situação e suas necessidades e instituir comissão. Nesse caso, eu estaria disposto a dar meu apoio técnico.
- Venezuela e Bolívia também anunciaram esta medida. É tendência regional?
- É tendência, inclusive no Brasil, onde há quinze dias se instituiu no Congresso Comissão Parlamentar de Investigação (CPI) da Dívida.
A auditoria tem raízes históricas, já que na década de 30 o governo de Getúlio Vargas no Brasil realizou auditoria que detectou muitas ilegalidades e obteve redução de mais de 50% das dívidas externas do Brasil, como resultado.
- Como você vê o processo de integração na região?
- Na conversação com o presidente Lugo falamos do papel do Paraguai, e a observação que eu fiz é que seria muito interessante construir um eixo comum entre os pequenos sócios que fazem parte da integração, me refiro a Bolivia, Equador e Uruguai.
- Qual é o objetivo?
- Há varias iniciativas de integração regional e o projeto de constituir Banco do Sul com 7 países, e a voz dos pequenos não é suficientemente audível frente aos grandes como Brasil, Venezuela e Argentina. O Paraguai precisa buscar caminho para determinar critérios comuns entre os pequenos para ter correlação de forças no interior do bloco de integração, e para que se respeitem os interesses dos pequenos países.
- Quais são as ameaças dos grandes países?
- As grandes potências regionais têm tendência a privilegiar seus interesses comerciais e econômicos, e isso a custo dos pequenos sócios. É o caso de Itaipu, Yacyretá. Então, para que funcione integração, tem de haver mecanismos para reduzir as assimetrias entre os países que fazem parte do bloco.
- Como foi a experiência européia nesse sentido?
- Na construção européia, os países mais fortes como Inglaterra, Alemanha e França transferiram finanças para Grécia, Portugal, Espanha e outros sócios com economias mais frágeis, de forma a obter uma integração reduzindo essas assimetrias.
- O que se deve priorizar neste processo?
- É fundamental em qualquer experiência de integração ter mecanismos de transferências, dotar a região de uma arquitetura comum, um Banco do Sul para financiar projetos que favoreçam a integração.
Na minha opinião, creio que teriam de ser projetos de soberania alimentar, reforma agrária, dotar a região de indústria farmacêutica para produzir genéricos de alta qualidade, melhorar a conexão ferroviária entre os países, e também projetos comuns quanto ao ensino, comunicação, habitação e meio ambiente.
- E como se daria segurança aos investimentos?
- Eu proporia dotar a região de órgão que seja CIADI do Sul. O CIADI é o Tribunal do Banco Mundial para sentenciar sobre os litigios entre transnacionais, empresas privadas e governos. O problema ali é que na maioria dos casos as sentenças são favoráveis às transnacionais que são do Norte, não é tribunal imparcial, não toma em conta as prioridades dos países do sul.
- Como seria o sistema?
- Os países da América Latina, quando firmam contratos de investimentos com as transnacionais, poderiam incluir nos convênios que, em caso de litígio a demanda tem de ser apresentada ante um órgão latino-americano. Para mim esta política seria como voltar a uma sugestão feita pela América Latina em inícios do século passado, que era a doutrina de Carlos Calvo,jurista argentino especializado em direito internacional que dizia que a jurisdição para as atividades econômicas tinham de ser da região e não as dos Estados Unidos e Grã- Bretanha.
- Qual é sua visão sobre a atual crise econômica mundial?
- Temos crise multifacetada, quer dizer, é financeira, econômica, climática, energética, alimentar e também de governabilidade mundial, porque não há um organismo com capacidade e legitimidade para buscar soluções.
- E o G-20?
- Para mim, o G-20 não é instituição democrática para buscar uma solução no nível de todas as nações, isso melhor corresponde às Nações Unidas.
- Como esta crise afetará o Paraguai?
- A coisa é muito clara, há queda brutal dos preços das matérias primas; no caso do Paraguai, o preço da soja, que vai seguir muito baixo, em relação ao pico de 2007 e 2008. A conseqüência vai ser redução forte das receitas de exportação, fato que vai afetar os demais países da América Latina.
- E como isso impactará no aspecto financeiro?
- O custo de endividamento externo aumentará, apesar da redução das taxas de juros nos EUA e Europa. Isto ocorre porque os bancos privados e os mercados financeiros não querem outorgar mais empréstimos ao Sul devido à queda dos preços das matérias primas e a crise econômica e financeira.
- Que medida mais urgente deve tomar a América Latina em relação à crise global?
- A América Latina tem de acelerar o ritmo da integração, e já se está perdendo demasiado tempo.
- Quais são os pontos mais importantes a delinear neste sentido?
- Seguramente um plano, inclusive comum, de emergência para proteger os empregos. No momento não tem havido muitas demissões, mas nos próximos meses, em vários países como Brasil e Argentina, seguramente vão ocorrer perdas de empregos.
- Como se poderia dar proteção a este setor?
- Se deve ter um plano concertado e para mim se deve propor a necessidade de fundos para criar empregos, manter o poder de compra dos cidadãos para sustentar seu consumo. Há que acelerar o lançamento do Banco do Sul para ter um organismo multilateral comum para financiar estes projetos.
- No nível de país, como o Paraguai deve se preparar?
- Para mim, o Paraguai teria de acelerar a atenção ao campo, a todos os pequenos produtores que não têm terras suficientes ou não a têm, e que poderiam produzir e satisfazer a demanda interna em alimentos, de maneira a alcançar a soberania alimentar no país.
- Quais políticas devem aplicar-se neste plano?
- Seria criar emprego, produzir riquezas, melhorar o abastecimento interno a partir dos produtores locais. Em um país como este, onde o campo tem uma importância muito grande e aonde a distribuição da terra é totalmente desigual, é fundamental avançar na reforma agrária.
- Qual é o panorama para os produtos agrícolas?
- Os preços dos alimentos vão seguir baixos porque não vejo como a cotação do petróleo poderia se recuperar, e então a produção de agrocombustíveis não vai ser rentável e a produção de alimentos vai ao consumo real, que não vai aumentar de maneira importante.
- Qual é a verdadeira possibilidade de redesenhar o modelo econômico mundial?
- A crise é tão forte que obriga a mudanças, mas os governos atuais não tomam a via das mudanças necessárias. A equipe econômica do novo presidente dos EUA Barak Obama está integrada pelas pessoas responsáveis pela crise atual, quer dizer, Lawrence Summers, que desregulou o sistema bancário, e Robert Rubin, diretor de Citibank que entrou em crise e recebeu uma ajuda de US$ 40 bilhões do Governo.
- O que vá se suceder então no mundo?
- Talvez o que vá se passar é uma crise todavia mais profunda nos EUA que os obrigará a fazer uma mudança real, mas não com essa equipe. O mesmo se dá na Europa e em outros países como Japão.
- O Sul seguirá pagando os prejuízos do Norte?
- O Sul tem a opção de negar-se a pagar esses prejuízos e acelerar sua integração para que seu crescimento não seja subordinado ao Norte. Há que se ter perspectiva histórica, na década dos 30 do século passado, frente à crise internacional, os países da América Latina suspenderam o pagamento da dívida e começaram modelo de industrialização por substituição de importações e houve taxas de crescimento muito fortes até os 60, antes de submeter-se nos anos 70 ao modelo neoliberal com as ditaduras.
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