Não responsabilização por crimes da ditadura pode condenar Brasil na OEA


Para Corte Interamericana de Direitos Humanos, barbaridades das ditaduras da América do Sul são crimes contra a humanidade e não estão sujeitos à prescrição e leis de anistia; o Chile já foi condenado por não punir responsáveis por tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados

Por Bia Barbosa

Ao contrário de vizinhos na América Latina, o Brasil não possui nenhum processo de responsabilização criminal pelos crimes da ditadura militar em andamento.
Após décadas do término de um dos períodos mais sombrios de nossa história, ninguém foi condenado ou sequer está sendo processado criminalmente pelas barbaridades cometidas nos porões do Exército.
Em debate realizado durante o Fórum Mundial de Juízes, em Belém (PA), o procurador regional da República em São Paulo, Marlon Weichert, afirmou que esta condição pode levar à condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos.
À luz de caso chileno, que levou o país a ser condenado pela Corte por não processar agentes que tinham praticado atos de tortura e homicídio na ditadura de Pinochet, a Corte tomou decisão paradigmática no que diz respeito à responsabilização por crimes desta ordem.
Afirmou que desaparecimentos forçados são crimes sobre os quais não incide a prescrição da pena, já que pode ser considerado um crime ainda em andamento.
Da mesma forma, afirmou que crimes contra a humanidade não podem ser deixados impunes em função da edição de leis nacionais de anistia.
”Se os países vizinhos encontraram caminho jurídico para ir contra esta impunidade e trazer alguma solução à ferida aberta, precisamos conhecê-lo. Estamos convencidos de que este caminho existe e é perfeitamente compatível com a Constituição Federal brasileira”, disse a também procuradora da República em São Paulo Eugênia Fávero.
No Brasil, pelo menos dois casos de responsabilização criminal – pela morte de José Luiz da Cunha e do jornalista Vladimir Herzog – foram arquivados sob o argumento de o Brasil não ratificou a convenção da ONU sobre a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade.
“Mas o Chile também não ratificou e foi condenado. Neste cenário, tenho convicção de que, se os familiares das vítimas acionarem a Comissão Interamericana contra a omissão do Estado brasileiro, estes casos chegarão à Corte e o Brasil será condenado”, afirmou Marlon Weichert.
Em 2005, a Organização das Nações Unidas (ONU) recomendou que o Brasil deveria considerar todos os meios possíveis de responsabilização penal, civil e administrativa pelos delitos cometidos durante a ditadura militar.
Ou seja, que o país deveria ir além das indenizações financeiras já pagas pelo Estado. Para a ONU, países que passaram por regimes de exceção, para evitar que a quebra do Estado Democrático de Direito se repita no futuro, devem implementar medidas do que se chama, no campo jurídico, de justiça transicional.
Tal justiça inclui:
- a revelação da verdade, mediante a abertura de arquivos do período e a criação de comissões da verdade imparciais;
- a responsabilização pessoal dos perpetradores de graves violações de direitos humanos, entendendo que a situação de impunidade é fator de inspiração e dá confiança a quem adota práticas violadoras de direitos;
- a reparação patrimonial dos danos às vítimas, através de indenizações financeiras;
- reformar institucionalmente os serviços de segurança, expurgando de seus quadros quem propagava a teoria do período;
- instituir espaços de memória, para que as gerações futuras saibam que, no país, se praticou o terror em nome do Estado.
“Países que não fizeram justiça transicional têm hoje nível de promoção dos direitos humanos muito inferior daqueles que a promoveram. O Brasil, por exemplo, tem os piores índices de direitos humanos quando comparado com Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia”, disse Weichert.
“Sem falar que há uma ambiguidade na postura do país: perante a comunidade internacional, o Estado Brasileiro defende a obrigação dos países de punir os crimes contra a humanidade. Foi assim no caso dos tribunais de Ruanda, da Iugoslávia e nas decisões da Corte Interamericana. Mas, ao aplicarmos o direito interno, dizemos que temos que considerar a anistia e a prescrição. Isso significa dizer: o Brasil vai ser condenado na corte Interamericana e tudo bem”, critica o procurador da República. “A situação é tão dramática que, assim como Pinochet foi processado pela justiça espanhola pelos crimes que cometeu no Chile, a justiça argentina ou de qualquer país pode vir a processar os crimes se o Brasil não o fizer. Um crime contra a humanidade desperta a jurisdição universal e qualquer país pode assumir essa responsabilidade”, conclui.

Abertura dos arquivos
Para chegar à condenação de responsáveis pelos crimes da ditadura o Brasil ainda tem um desafio grande a ser enfrentado, o primeiro passo a ser dado: abrir os arquivos do período militar, colocando em prática o primeiro ponto de qualquer processo de reparação por violações de direitos humanos: a revelação da verdade.
Recentemente, o governo brasileiro declarou à imprensa que os documentos do SNI haviam sido levados para o Arquivo Nacional e estavam disponíveis para consulta. Foram. No entanto, o decreto que autoriza o transporte dos documentos também diz que o sigilo de tais documentos segue respondendo à lei que regulamenta o acesso à informação.
“Esses arquivos trocaram de lugar mas o sigilo seguiu mantido. Vários documentos foram abertos e trazem informações importantes do período. Mas muita coisa não está lá, como diversos anexos citados. Certamente foram destruídos”, acredita Eugênia Fávero.
“Agora, mesmo com a lei que admite o sigilo eterno, o Presidente da República pode, a qualquer momento, levantar o sigilo desses documentos. Então por que ele não faz? E lá fora diz que faz? Por que é tabu tão forte? A quem se deve isso? Não haveria ninguém com mais autoridade do que o presidente Lula para virar esta página como ela tem que ser virada, em vez de colocar uma pedra em cima disse”, avalia.
Um exemplo de informação estratégica, que poderia contribuir na identificação de corpos de diversos militantes contra a ditadura, seria o acesso à planta básica de uma base aérea que funcionou na região do Araguaia.
O Ministério Público Federal participou de investigação na região e identificou pessoas que estariam enterradas nesta base. O Exército até hoje se recusa a fornecer a planta original do local, para identificar este cemitério clandestino.
“Temos convicção de que existem muitos documentos que, se forem conciliados com outras fontes históricas, permitiriam a reconstituição de muitas informações. Mas o Estado Brasileiro segue negando o acesso a essas informações e, assim, proibindo as famílias de enterrarem em definitivo seus entes. Tudo isso para preservar a biografia de meia dúzia de torturadores”, acusa Marlon Weichert.
“Mas 2009 será ano importante nesta luta. O STF (Supremo Tribunal Federal) vai posicionar-se sobre a lei de anistia, a Comissão Interamericana deve pronunciar-se sobre o Araguaia e a sociedade começou a debater este tema. Deixou de ser questão interditada. Acho que estamos ainda no primeiro minuto do primeiro tempo deste jogo”, concluiu.

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