A doença é própria do sistema econômico, que tece conflitos implacáveis e destrutivos na produção e distribuição de bens e serviços: empregadores e empregados são adversários eternos e empresas são levadas à competição sem fim
Rick Wolff
Professor de Ciências Econômicas na Universidade de Massachusetts
Autor de Class Theory and History: Capitalism and Communism in the USSR
O capitalismo aconteceu e onde aconteceu lançou a própria sombra: a auto-crítica dos seus viéses básicos, afirmando que a sociedade moderna pode fazer melhor através de sistemas econômicos diferentes, pós capitalistas.
Esta sombra crítica levanta-se para aterrorizar o capitalismo quando – em períodos de crise como a atual – fenômenos maus acontecem subitamente.
Karl Marx, poeticamente, chamou essa crítica de espectro que assombra o capitalismo.
Portanto, a crise financeira norte-americana que se espalha no mundo é sintoma; a doença subjacente é o próprio capitalismo, sistema econômico que tece conflitos implacáveis e destrutivos na produção e distribuição de bens e serviços.
Empregadores e empregados precisam cooperar para fazer a economia funcionar, mas, no capitalismo, eles são adversários eternos cujos conflitos explodem periodicamente em crises.
É isso que acontece hoje.
O capitalismo leva as empresas – os empregadores – às lutas sem fim umas contra as outras, coisa que chamamos de competição; isto periodicamente da mesma forma resulta em conflitos e crises; e é isso que acontece hoje.
Na década de 1970, os empregadores descobriram meio de travar a lenta ascensão a longo prazo dos salários reais dos seus empregados.
Através da deslocalização de empregos para outros países, em busca de remunerações mais baixas; da atração das mulheres para a força de trabalho, explorando-a a custo menor; da substituição de trabalhadores por computadores e outras máquinas; e da exploração de imigrantes de baixos salários, os empregadores rebaixaram os salários dos seus empregados mesmo quando eles produziam cada vez mais mercadorias para venda.
Os resultados eram previsíveis: por um lado, os lucros da companhia subiam (afinal de contas, os trabalhadores produziam cada vez mais sem receberem mais por isso); por outro lado, após uns poucos anos, os salários estagnados dos trabalhadores demonstraram-se insuficientes para permitir-lhes comprar a crescente produção do seu trabalho.
Dada a forma como o capitalismo funciona, empregadores incapazes de vender tudo o que produzem despedem os seus próprios empregados; naturalmente isso só agrava o problema.
Na década de 1970, outra crise já havia atingido os EUA, com recessão pesada, mas foi curta porque o capitalismo descobriu meio de adiá-la: endividamento maciço.
Já que os empregadores tinham êxito em impedir o crescimento do salários, o único meio de vender a produção sempre em expansão era emprestar aos trabalhadores o dinheiro para comprar mais.
Corporações investiram lucros na expansão da compra de novos títulos garantidos por hipotecas, empréstimos para automóveis e cartões de crédito dos trabalhadores. Os possuidores de tais títulos estavam portanto aptos a receber porções dos pagamentos mensais que os trabalhadores faziam sobre aqueles empréstimos.
Com efeito, os lucros extras feitos com a manutenção dos salários dos trabalhadores em baixo nível agora duplicavam direitos para os empregadores, que ganhavam substanciais pagamentos sob a forma de juros ao emprestarem parte daqueles lucros de volta aos trabalhadores.
Que sistema! Que selvagerismo!
O adiamento da solução para a crise da década de 1970 apenas preparou o caminho para crise maior.
Os florescentes empréstimos ao consumidor nas décadas de 1980 e 1990, e desde 2000, especialmente no desregulamentado mundo financeiro do ex-presidente republicando de Ronald Reagan e do atual, Bush, provocaram excessos selvagens motivados pelo lucro e corrupção (a bolha do mercado de ações e a seguir a bolha imobiliária).
Isso levou milhões de americanos a dívidas insustentáveis.
Por volta de 2006, a maior parte dos extenuados mutuários – sub-prime – já não podia pagar mais a dívida.
Este castelo de cartas começou então a sua espiral de descida.
A competição entre empresas contribuiu para esta crise.
Quando alguns bancos fizeram grandes lucros apressando-se a emprestar aos trabalhadores, os concorrentes temiam que aqueles bancos utilizariam tais lucros para superá-los competitivamente.
De modo que eles também correram para o empréstimo ao consumidor.
Para levantar o dinheiro a fim de efetuar tão lucrativos empréstimos aos trabalhadores, os bancos fizeram utilização expandida de novos tipos de instrumentos financeiros, principalmente títulos garantidos pelas obrigações de dívidas dos trabalhadores (títulos cujos possuidores recebiam porções das prestações dos empréstimos dos trabalhadores).
Os bancos dos EUA venderam estes títulos globalmente para mobilizar todo o cash do mundo.
O mundo todo então foi arrastado para a dependência de remoinho: o capitalismo norte-americano, que insuflava o poder de compra dos trabalhadores com empréstimos de custos elevados, porque ele já não elevava mais os seus salários.
As agências de classificação (Fitch, Moody's, Standard and Poor) avaliaram erradamente os perigos destes títulos, elevando-lhes a classificação (ranting).
Estas agências assim estimulavam o negócio de instituições financeiras que precisavam de altas classificações para vender os títulos apoiados por dívidas.
Bancos privados e públicos de todo o mundo competiam uns com os outros pela compra de títulos apoiados pela dívida dos EUA porque os mesmos eram classificados como quase sem riscos e ainda pagavam altas taxas de juro.
A competição empresarial e os conflitos empregador-empregado – ambos componentes nucleares do capitalismo – foram as causas principais da crise financeira de hoje.
Mas a enorme ajuda estatal proposta pelo governo Bush e apoiada pelo Congresso, não trata nem do problema dos salários estagnados nem da competição.
Ao invés disso, a ajuda proposta planeja "consertar" a crise financeira com o lançamento e vastas somas de dinheiro aos grandes bancos na esperança de que eles retomem os empréstimos e assim puxem a economia para fora da crise.
Uma vez que esta solução ignora os problemas subjacentes da economia capitalista, suas perspectivas de êxito são fracas.
Nenhum questionamento ao capitalismo é concebível para os líderes dos EUA.
Muito pelo contrário, suas políticas objetivam principalmente a preservação do capitalismo – em grande medida pela manutenção da sua responsabilidade pela crise atual fora do debate público e portanto longe da ação política.
Mas esta crise, como muitas outras, levanta o espectro de Marx, a sombra do capitalismo, mais uma vez.
As duas mensagens básicas do espectro estão claras:
(1) a crise financeira de hoje decorre dos componentes nucleares do sistema capitalista e (2) resolver realmente a crise atual exige a mudança daqueles componentes a fim de mover a sociedade para além do capitalismo.
Por exemplo: se trabalhadores em cada empresa tornassem-se os seus próprios conselhos de direção, os velhos conflitos capitalistas entre empregadores e empregados estariam ultrapassados.
Se agências do estado coordenassem decisões de produção interdependentes de empresas, a competição restante poderia limitar-se ao focar prêmios por melhorias de desempenho.
O governo dos EUA pode não apenas salvar enormes instituições financeiras como também exigir-lhes que se transformem em empresas em que empregadores e empregados sejam as mesmas pessoas e em que coordenação e competição tornem-se os aspectos principal e menor das interações empresariais.
Para tentar controlar a crise, o governo dos EUA tomou o comando da Fannie Mae, Freddie Mac e AIG, mas isto não alterou nem a organização destas empresas nem a competição destrutiva entre elas; a oportunidade foi tragicamente perdida.
Se os ventos políticos continuarem a mudar, soluções que respondam à crise atual com soluções fora do capitalismo podem ainda ser tentadas.
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