Mistura de português, espanhol e guarani, a língua falada em região da tríplice fronteira do Cone Sul cresce como movimento literário
Cláudia Jordão
Da revista IstoÉ
Com o humor típico de show man, o ator Paulo Betti roubou a cena no Festival de Cinema de Gramado, há duas semanas, no Sul do País.
Apresentador oficial do evento, Betti defendeu calorosamente a adoção do portunhol entre os presentes.
Cinco filmes latino-americanos concorriam ao Kikito e cerca de 20 cineastas de países vizinhos participavam da premiação.
A iniciativa de Betti tem explicação.
Recentemente, o ator conheceu o poeta “brasiguaio” – termo usado na região de fronteira entre Brasil e Paraguai para definir pessoas que nasceram no Brasil, mas vivem no país vizinho – Douglas Diegues e teve seu primeiro contato com o portunhol selvagem, versão mais turbinada do convencional.
Nascido da miscelânia que se fala na região da tríplice fronteira, onde ruas brasileiras, paraguaias e argentinas confundem-se, o portunhol selvagem é mistura de português, espanhol, guarani e, até mesmo, inglês.
O termo é de autoria do próprio Diegues, em homenagem às selvas primitivas da região.
De alguns anos para cá, no entanto, esse emaranhado de idiomas tem deixado a marginalidade das cidadezinhas fronteiriças para se tornar um movimento literário latino-americano.
Na Flip deste ano, Festa Literária Internacional de Paraty, no Rio de Janeiro, o autor pernambucano radicado em São Paulo Xico Sá participou de mesa de discussão e debateu, boa parte do tempo, em portunhol selvagem.
O portunhol foi a língua oficial da Flap – versão alternativa da Flip, em São Paulo. Além de brasileiros, escritores e poetas hermanos participavam do evento.
Os porta-vozes do movimento são poetas, escritores e artistas que estão presentes em quase todos os países da América Latina.
A miscelânia de português e espanhol migrou da fala para a escrita no início da década de 90, através do livro Mar paraguayo, do paranaense Wilson Bueno.
Mas somente de dois anos para cá o uso da língua ganhou força na literatura latino-americana.
Diegues é o precursor e divulgador-mor do movimento.
Em 2002, lançou seu primeiro livro, Dá gusto andar desnudo por estas selvas. Depois disso, escreveu outras cinco obras e inaugurou a editora YiYi Jambo, especializada em lançar e traduzir títulos em portunhol selvagem.
“Fundamos komitê para traduzir as obras completas de Manoel de Barros al portunhol selvagem, al espanhol y al guarani”, diz Diegues, no mais perfeito portunhol selvagem.
“Escrever nessa língua é divertidíssimo. Virou idioma oficial de e-mails e conversas de bar”, diz Joca Terrón, escritor mato-grossense radicado em São Paulo.
No Brasil, Terrón foi o primeiro a aderir à onda; seu conto Monaks atravessam el Apa, escrito em portunhol em 2003, virou livro em 2006; sua segunda obra, Transportunhol borracho, foi lançada um ano depois.
A vontade de aventurar-se pelo portunhol selvagem surgiu depois de Terrón conhecer Diegues pessoalmente.
Mas, além disso, o escritor cresceu familiarizado com mix de idiomas.
Nascido em Cuiabá, cresceu em Bela Vista, cidade na fronteira com o Paraguai e com a Bolívia.
“Lá, todos eram trilíngües. Aprendi que, apesar da diferença da língua, somos muito parecidos”, diz Terrón.
Depois dele, vieram outros brasileiros.
Xico Sá tem dois títulos: Caballeros solitários rumo ao sol poente e La mujer és un gluebo da muerte; Ronaldo Bressane é autor de Cada vez que ella dice xis.
A blogueira Clarah Averbuck é o membro mais novo do grupo; ela escreveu texto, em portunhol, em Nossa Senhora da Pequena Morte, que será lançado em setembro. Incansável, o próximo passo de Diegues é levar o portunhol para o cinema.
Para isso, conta com o apoio de Paulo Betti.
“Estarei no filme como ator ou na função que Douglas mandar. Acho que temos que perder a verguenza de hablar espanhol”, diz Betti.
O portunhol selvagem, assim como o convencional, que escapa da boca de qualquer brasileiro sem formação em espanhol diante da necessidade, não possui regras gramaticais.
“É língua freestyle”, diz Terrón.
Segundo os escritores, o público não leva a sério, mas se diverte.
“Há reação lúdica (dos leitores). Todo bêbado, louco e criança adora hablar em portunhol selvagem. Eis o segredo do sucesso e da longevidade”, diz Xico.
Durante sua participação na Flap, o escritor chileno Héctor Hernández Montecinos disse acreditar que, dentro de dez anos, o portunhol será a língua oficial da América Latina.
Seus hermanos discordam. “Deixa o oficialismo com os homens dos Itamaratis da vida”, minimiza Xico Sá.
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