As novas relações do poder global


Entrevista do prof. Theotônio dos Santos (foto), da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretor da Cátedra e Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen) da Unesco e da Universidade das Nações Unidas

Viniciu Neder
Editor do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro

As mudanças na estrutura de produção trazidas pela tecnologia das últimas décadas vão alterar as relações de poder no mundo, segundo o economista e sociólogo Theotônio dos Santos, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretor da Cátedra e Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen) da Unesco e da Universidade das Nações Unidas.
Para
Theotônio, os países emergentes conquistarão mais poder, porque, além de estarem de igual para igual com os desenvolvidos no novo sistema de produção, os emergentes têm aproveitado a sobra de dinheiro no mundo, assumindo poder financeiro.
Nesta entrevista, o professor mostra que a forma como os emergentes lidarão com esse poder determinará as relações internacionais daqui em diante no mundo globalizado, que, de acordo com ele, vive o ápice de processo iniciado na expansão marítima.

O que de realmente novo há, do ponto de vista da economia, na globalização?
Theotônio dos Santos — O ponto de partida do sistema mundial é o comércio mundial, particularmente a partir do final do século 15, quando começa a expansão marítima. Não que não existisse comércio mundial antes. Existia a rota da seda, que ligava a China até o Mediterrâneo e era um comércio extremamente importante.
Há certa discussão entre os economistas sobre a importância dessa fase do comércio mundial, mas há o reconhecimento de que esse comércio de longa distância era já muito significativo até o século 15. E a busca dos europeus por caminho marítimo demonstra a importância desse comércio, que estava dominado pelos árabes e pelo islamismo em geral. Mas a abertura do caminho marítimo para as Índias e a descoberta da América introduzem na economia mundial uma dinâmica muito grande. Em geral, é pouco conhecida no Brasil a importância das economias indígenas da América, mas a produção de prata e ouro que entrou na economia mundial através das Américas mudou muito profundamente a situação européia.
O peso financeiro da Europa no resto do mundo aumentou. A globalização começa aí. Sem contar que já existia economia mundial em torno da China antes. Essa economia mundial anterior continuou sendo muito importante até o século 18.
A China era a maior economia até o século 18 e tinha volume de comércio e produção que era superior a toda a Europa junta.
A China continuou na liderança da economia mundial até o século 18, mas com a revolução industrial a Europa deu um salto que permitiu a ela assumir essa liderança a partir do final do século 18 e começo do 19. Aí ela derrota os árabes. A derrota dos árabes foi no século 19. O Império Otomano só termina na I Guerra Mundial. Isso tudo está dentro de uma dinâmica de avanço de formação de uma grande economia mundial. O predomínio da economia mundial é o elemento chave para repensar esse processo de globalização.

A globalização é então o ponto culminante de um processo que se inicia com a expansão marítima?
— O que diferencia os últimos 20 anos, quando se passou a falar em globalização, é que houve salto tecnológico muito grande na década de 1980, permitindo que a interação entre as várias regiões do globo fosse muito mais rápida e instantânea.
Esse salto tecnológico é herdeiro da conquista espacial. Todo o sistema de satélites transformou a comunicação em coisa imediata. Depois veio a internet. Mas, na verdade, junto com isso há revolução nas forças produtivas, sobretudo no setor industrial. Na década de 1980, o setor industrial absorve a automação, com a introdução dos robôs.
A robótica, que tem sua hegemonia no Japão na década de 1980, se generaliza na década de 1990 nos EUA, na Europa e até em países em desenvolvimento. Esse é outro fenômeno que modifica muito fortemente a situação mundial.


Quais são as principais implicações políticas do processo de internacionalização da economia?

— As implicações são complexas. De um lado, e esse é fenômeno pouco compreendido, a direção desse processo (de globalização) exige centralização de recursos que, na verdade, só o Estado pode fazer. Isso é contradição muito grande, porque o período da década de 1980 é dominado pelo modelo neoliberal, que pretende organizar a economia em torno do livre mercado e do Estado mínimo.
Mas exatamente nesse momento, há afirmação da predominância do Estado na organização dos sistemas de consumo e de produção mundial. Esse fenômeno se instaurou no período Reagan (Ronald Reagan, presidente americano de 1981 a 1989), que foi um governo conservador, que se apoiou no neoliberalismo, mas que realizou estatização colossal da economia americana. Em primeiro lugar pela via da dívida pública. Os EUA aumentaram o déficit fiscal de US$ 50 bilhões para US$ 370 bilhões durante o governo Reagan. Portanto, o comando da economia estava no gasto público, apesar de ser governo que defendia o Estado mínimo.
Dos anos 1970 aos anos 2000, o gasto público subiu de uns 40% para 60% do PIB dos países desenvolvidos. Esse aumento do gasto público tem aspecto muito importante. Ele não foi voltado fundamentalmente para atividades produtivas. Ele foi voltado muito mais para o setor de serviços e o setor financeiro. No caso americano, para o gasto militar e, sobretudo, pesquisa e desenvolvimento. Como derivado imediato disso, a dívida pública é gerida pelo setor privado. Ocorre agigantamento fantástico do setor financeiro na década de 1980 em função desse aumento do gasto público. Muita gente defende a tese de que esse setor financeiro se desenvolveu simbolicamente, fora do processo real, mas não é verdade, pois ele se desenvolveu a partir da intervenção estatal. Daí, inclusive, a taxa de juros ser elemento chave para qualquer política econômica, porque grande parte do consumo, que é do Estado, está (é regido pela) na taxa de juros.
Isso tudo mudou muito a situação da economia mundial. O outro lado do crescimento do setor financeiro é o déficit comercial. As relações econômicas comerciais se converteram num desequilíbrio colossal. Essa é outra coisa muito estranha, pois o pensamento neoliberal se baseia na idéia de equilíbrio. Ele é contra o déficit público, é contra o déficit comercial. Ademais, segundo esse pensamento, o próprio mercado produziria reações que eliminariam esses déficits. Mas o déficit comercial americano vem aumentando ano a ano. Melhorou no período Clinton (Bill Clinton, presidente dos EUA de 1993 a 2001) e agora está em fase colossal com Bush.
O déficit comercial gera excedente financeiro colossal. A junção do déficit fiscal com o comercial permite que o excedente gerado no setor comercial se converta em compra de títulos da dívida pública. De tal forma que o déficit fiscal é coberto pelo déficit comercial. Eles se complementam. Durante a década de 1980, os 10 maiores bancos do mundo são japoneses. Por quê? Porque o déficit comercial dos Estados Unidos com o Japão gerava um grande excedente e os japoneses compravam títulos da dívida pública americana. O mesmo está acontecendo agora com a China.
O principal déficit comercial americano é hoje com a China e a China, em período curtíssimo, é a maior proprietária de títulos da dívida pública americana.
A diferença entre o período da hegemonia japonesa sobre o setor financeiro e o período de agora, em que a hegemonia passa para a China, é que o excedente manejado pelo Japão era manejado por vários bancos japoneses. Todos muito ligados ao Estado, mas bancos privados. Já no caso atual, esses recursos colossais são manejados pelo Estado chinês. Nunca se pensou Estado que tivesse poder financeiro tão grande como tem hoje o chinês. Mas não é só o Estado chinês. Embora a China comande isso, com US$ 1,5 trilhão em títulos, as potências árabes — os países do Golfo Pérsico — estão nesse momento com mais de US$ 1 trilhão de reservas. As indicações de que vai haver mudanças muito grandes, e já está havendo mudanças muito grandes, são claras.
No caso da China, enquanto os japoneses demoraram muito para sair do setor financeiro de compra de títulos e começar a comprar empresas nos EUA, os chineses já têm um processo de compra de empresas muito grande. Acho muito difícil que possa se deter esse processo porque a compra de títulos da dívida pública americana é um negócio ruim demais nesse momento. Trata-se de moeda em decadência, de governo com dívida pública que não vai poder pagar evidentemente e de um país sem poupança.


A tendência é que os emergentes parem de financiar a dívida pública americana? O senhor acha que isso pode ter impacto no jogo de poder global?

— O impacto é muito grande. A decadência americana é fenômeno muito forte.
O grande mercado do mundo é o mercado chinês, não é o mercado americano.
O mercado chinês cresce potencialmente, porque tem moeda de potência financeira que vai se valorizar necessariamente, já está se valorizando. Mesmo quando o governo chinês tenta conter isso, a verdade é que a renda chinesa e a moeda chinesa estão em expansão. A demanda do mundo vai para o lado da China.
A dinâmica do crescimento mundial está se deslocando. Há dois fenômenos.
O primeiro é a reestruturação do sistema produtivo mundial, em que a automação entra substituindo maciçamente a produção anterior. É muito mais difícil substituir o sistema industrial anterior nos países centrais do que nos países emergentes. Quando país como a China assume isso como tarefa de Estado em grande escala, a capacidade de entrada das empresas que assumem a nova tecnologia e se organizam de acordo com ela é muito forte. Elas podem liquidar em período relativamente rápido quase toda a estrutura industrial existente. Essa tecnologia (do novo sistema produtivo mundial) tende a preços cada vez mais baixos, ademais de qualidade tecnológica. O preço tende a zero. A automação leva o preço a zero.
Os monopólios tradicionais estão diante de uma possibilidade de entrada de novas empresas colossal.


Como os fenômenos tanto do sistema produtivo quanto do sistema financeiro se enquadram no atual quadro de liquidez dos mercados?
— Os investimentos são cada vez mais baixos, porque a nova tecnologia incorpora maquinário com poder de produção colossal, mas com custo inferior ao maquinário anterior. A robótica hoje é baratíssima. O avanço da inteligência artifical transformou o robô em produto industrial como qualquer outro. A tendência é a nanotecnologia.
O custo da robotização é relativamente muito mais baixo do que qualquer outro investimento. Houve queda do capital necessário para investir. Isso é fato revolucionário do ponto de vista produtivo. Com isso, sobra dinheiro. O dinheiro está sobrando no mundo, desde a década de 1980. A liquidez se acentua porque há deflação colossal do ponto de vista produtivo. Os produtos, no mundo todo, são cada vez mais baratos. A produção no mundo aumenta colossalmente, mas o volume de custo dessa produção cai enormemente. Agora, a crise atual é tipicamente expressão dessa liquidez.

Qual é o setor mais fácil de valorizar-se para manter o investimento no sistema financeiro?
– Securitização e o setor imobiliário, que no fundo não é bem o setor imobiliário, mas sua securitização. O setor imobiliário entra em crise, então você refinancia o setor na base de sistema de securitização artificial.

E o que significa isso?
– Aumento de preço colossal e inflação colossal em setor muito chave da economia. No Japão, na década de 1970 e 1980, as terras custavam mais do que todas as terras dos EUA.

Então a crise imobiliária atual não sinaliza o fim da liquidez?
— O pior é que o Estado e os bancos centrais estão tentando intervir para salvar os picaretas, mesmo porque eles aprovaram o sistema. Aí o senhor Greenspan (Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, o banco central americano, de 1987 a 2006) não viu problema nisso. Esse mundo especulativo ajudado pelo Estado chegou a um ponto que ou quebra todo mundo ou os contribuintes americano e europeu vão ter que pagar.
Nesse caso os emergentes ficam mais protegidos? — Ficam mais protegidos porque eles estão aumentando seus recursos pela via do superávit comercial. O Brasil, em quatro anos, saltou de uma situação de dívida colossal para ter hoje US$ 160 bilhões em reservas, simplesmente aumentando a exportação, num contexto em que as economias centrais são cada vez mais compradoras e menos produtoras.

Os emergentes podem garantir a continuidade da liquidez?

— O que os emergentes vão fazer com sua liquidez? Vão fazer como na década de 1970, com os petrodólares? Os produtores de petróleo reagiram à desvalorização total do dólar e aumentaram os preços. Os árabes não tinham o que fazer com esse dinheiro, os produtores de petróleo não tinham aplicação imediata possível. Então o sistema bancário internacional, basicamente o americano, se oferece para reciclar esses petrodólares. E recicla, endividando o mundo inteiro, principalmente os países em desenvolvimento, que recebem uma quantidade enorme de recursos. Recursos em termos, pois não havia o que fazer com esse dinheiro. Inventam-se investimentos colossais para justificar esse dinheiro. Com isso, inflaciona-se o mundo e a taxa de juros cai lá embaixo. Mas no final da década de 1970, os EUA revertem o processo e aumentam a oferta de petróleo no mundo, com certa política para reduzir a demanda. De repente, esses países endividados, mas com taxas de juros flutuantes, vêem a taxa de juros (americana) ser puxada para 18%. De 2% a 4%, ela sobe para 18%.
O mundo todo dos endividados ficou na mão dos Estados Unidos. Assim, foi embora o dinheiro. Esse dinheiro da liquidez atual pode ir embora de uma hora para outra. Quando o governo venezuelano de Chávez (Hugo Chávez, presidente da Venezuela desde 1999) propôs o Banco do Sul a reação foi tentar desqualificar totalmente a idéia, como toda idéia que tente valorizar o Sul. Em 1970, foi a Opep, por sinal uma idéia venezuelana. Então, o que fazer com esses recursos? Assumir o controle deles. Depositar os recursos nos EUA, em dólar, moeda que já se desvalorizou, mas ainda vai desvalorizar-se enormemente, é jogá-los fora. Primeiro, eles têm que ser orientados para moedas fortes, no caso, o euro é uma das saídas, mas também, evidentemente, na Ásia, vai ter que surgir uma moeda forte. Nesse momento, inclusive, a verdade é que o yuan começa a ganhar liquidez. Os chineses não têm necessidade disso, mas é um fato. Na Ásia, quem vai preferir o dólar, que é uma moeda decadente, diante de um yuan, que os Estados Unidos exigem que se valorize todos os dias, que todo mundo espera a valorização? É moeda que necessariamente vai se valorizar. Então, por que alguém vai preferir o dólar? A verdadeira moeda que vai se valorizar, em questão de anos, por mais que os chineses resistam, é o yuan.


O Brasil pode vir a ser uma potência na economia internacional?

— Se conseguir colocar para fora essa camada de economistas a serviço de deter o Brasil, sim. Basta flexibilizar a política monetária, que o País cresce na casa dos 5%. Nenhum país no mundo pratica a política econômica que temos no Brasil. Não tem teoria econômica no mundo que sustente que um País com a liquidez do Brasil nos últimos anos tenha a maior taxa de juros do mundo. Não tem sentido. País com as necessidades do povo brasileiro, com a demanda pobre como é a do Brasil, concentrada em setor muito pequeno, não pode gerar política econômica cuja preocupação principal seja evitar uma explosão de demanda. País que tem superávit fiscal primário desde a década de 1990 não pode aumentar a dívida e pagar a maior taxa de juros do mundo. É absolutamente irracional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Buscar neste site: